O coitus a tergo já foi descrito de todas as maneiras. Quase todas. Almodóvar fez uma pequena inversão – palavrinha perigosa por mexer nas lombrigas dos moralistas, pois já não se chama ninguém de invertido, sob pena de a disputa terminar em quebra-pau – e mostrou no filme A Lei do Desejo Antonio Banderas sendo enrabado de frente por seu parceiro. Os defensores dessa posição dizem que ela é mais humana no seu face a face, diferentemente da pegada pelas costas que satisfaria os crus apelos da animalidade de um sexo selvagem.
Lacan um dia se queixou de que a psicanálise sequer tinha sido capaz de criar uma nova perversão. O mestre francês batia com força no moralismo burguês, e não podia imaginar que talvez uma nova perversão viesse do campo da filosofia e não da psicanálise. Se bem que a enrabação filosófica inaugurada por Gilles Deleuze, de tanto ser cutucada por outro filósofo, o esloveno Slavoj Zizek, acabou levando o psicanalista Jacques-Alain Miller a dizer que ela também foi praticada por seu sogro no famoso ensaio sobre a fantasia perversa chamado Kant com Sade.
Vamos por partes, genitais à parte. A coisa é séria porque mexe na definição de perversão para além dos limites morais. Tecnicamente, ela não pode ser confundida com a perversidade, o gozo dos assassinos. Ela pode ser entendida no campo lacaniano ou como “a essência do homem” – a perversão na sua incrível variedade de modos de gozar – ou como uma vontade absoluta de gozo mortífero – a perversidade – que só leva em conta o desejo do outro para lhe provocar angústia, divisão e sofrimento e só se for para atropelá-lo, comê-lo, devorá-lo vorazmente e mostrar-lhe que o outro é tão voraz quanto o agente que causa a dor, tão maligno quanto ele, o torturador, que só se interessa por sua vítima enquanto ela for um sujeito, abandonando-a com frieza depois que ela se torna uma poça de sangue, objeto inerte. Estamos falando até aqui do sádico profissional a serviço de algum senhor – quem mandou matar Marielle? Quem é o dono da porcada? – , e não do necrófilo, por exemplo, também a serviço de um mestre, só que o mestre absoluto, a morte. Primeiro o torturador, depois o come-cadáver.
O nada que é humano me é estranho pode às vezes fazer vacilar nosso juízo. Mas agora estamos longe, na filosofia, desse gozo mortífero, sofrido e sombrio. Uma nota de humor se faz necessária para que se possa brincar – no pensamento – tirando as crianças da sala.
Não vê que Zizek pega no pé de Deleuze voltando contra ele a inesperada enrabação filosófica? Foi assim no livro Órgãos sem Corpos / Deleuze e Consequências. Lá pelas tantas, o esloveno cita o francês num subtítulo (p. 75): “Pegando Deleuze por trás”, tudo por conta de um terceiro, Hegel, que Zizek ama e Deleuze odeia, segundo eles dizem.
Zizek com a palavra: “Além de Hegel há três outros filósofos que são, sem dúvida, odiados por Deleuze: Platão, Descartes e Kant. Entretanto, no que diz respeito aos últimos três, Deleuze encontra um modo de lê-los ‘à força, contra sua convicção’, para descobrir em suas próprias práticas teóricas procedimentos (de invenção conceitual, de ‘encenação’ de conceitos) que ofereçam uma forma de minar suas posições ‘oficiais’.”
A pegada de Zizek é terrível. Seu argumento pede ao leitor que se lembre da interpretação de Platão que Deleuze nos oferece no apêndice de A Lógica do Sentido, “que quase faz de Platão o primeiro antiplatônico”. Pede que nos lembremos também da “detalhada reconstrução do processo de ‘montagem’ e encenação que Descartes executa em sua construção do conceito de ‘cogito’, ou a leitura da multiplicidade das faculdades da razão em Kant em oposição à unidade transcendental do sujeito.”
Alta filosofia, já veremos a baixaria que esconde. “Em todos os três casos, Deleuze tenta entrar no território inimigo e alterar, em seu benefício, o próprio filósofo que deveria ser seu maior inimigo. Entretanto, não existe tal manobra em relação a Hegel; Hegel é ‘mau por inteiro’, irredimível.” Deleuze caracteriza essa leitura dos filósofos como sendo guiada pela tendência de conceber [ e aqui, a pérola] “a história da filosofia como uma espécie de enrabada, ou, o que dá no mesmo, de imaculada concepção. Eu me imaginava chegando pelas costas de um autor e lhe fazendo um filho, que seria seu, e no entanto seria monstruoso. Que fosse seu era muito importante, porque o autor precisava efetivamente ter dito tudo aquilo que eu lhe fazia dizer. Mas que o filho fosse monstruoso também representava uma necessidade, porque era preciso passar por toda espécie de descentramentos, deslizes, quebras, emissões secretas que me deram muito prazer.” “Eita, eh Beraba”, dizia o mineirinho caipira nos programas de humor do antigo rádio de saudosa memória. A cobra e o pau: isto está em Deleuze, Gilles. Negotiations. P. 67. Ed. Brasileira: Conversações. São Paulo: Ed.34, 1992. p. 14. “Mas é pra isso que a gente manda as criança pra escola, nega?”, ainda o mineirinho. “Pra isso e muito mais, meu velho, tu num sabe da missa a metade.”
“Talvez – diz Zizek – essa referência inesperada à prática filosófica [ah, bem] da enrabada, sodomia, forneça o melhor exemplo do que Deleuze efetivamente objetiva alcançar por meio de sua insistência na univocidade do Ser: uma maneira de entender acontecimentos ou proposições disparatados e incompatíveis (‘concepção imaculada’, ‘enrabada’, ‘interpretação filosófica’) como ocorrendo no mesmo nível ontológico.”
O esloveno não está de sacanagem. “É, portanto, crucial entender o modo pelo qual a atitude apropriada em relação a proposições como ‘pegar um filósofo por trás’ não é a de um escárnio obsceno, condescendente e desrespeitoso, mas a de uma seriedade completamente ingênua [para de rir]: Deleuze não está tentando nos divertir criando um efeito chocante. E o mesmo vale para Foucault que, em sua genealogia, situa no mesmo nível de univocidade afirmações filosóficas, debates econômicos, teorias legais, injunções pedagógicas, conselhos sexuais.” Sobrou pro Foucault também. Dando e enrabando.
Continuando com Zizek: “Essa prática da sodomia é também o que distingue Deleuze do âmbito da desconstrução”. Chegou a vez de Derrida. “Talvez o sinal mais óbvio da fenda que separa Deleuze da desconstrução [derridiana] seja sua oposição feroz à ‘hermenêutica da suspeita’ desta última” [o que faria de Derrida um doador/enrabador desconfiado, sem alegria?]. “Ele (Deleuze) deu o seguinte conselho a seus estudantes:
‘Confiem no autor que estão estudando. Prossigam descobrindo seu próprio caminho. […] Vocês devem silenciar as vozes de objeção que existem dentro de vocês. Vocês devem deixar que ele fale por si mesmo, devem analisar a frequência de suas palavras, o estilo de sua obsessão’.” (Notinha cheia de detalhe: “Apud Colombat, André-Pierre. Three Powers of Literature and Philosophy. In: Buchanan, Ian (Ed.). A Deleuzian Century?. Durham, N.C.: Duke University Press, 1999, p. 204).
Nesse ponto, Zizek começa a falar de “discurso livre indireto” como sendo a segunda característica que separa Deleuze de Derrida. Pedi uma ajudinha à Wikipedia para mais detalhes sobre o que abreviei como “dil”, discurso livre indireto, e me surpreendi com a homofonia com o dispositivo intrauterino “diu” que evita a concepção. Vi que forcei a barra, poderia ter abreviado como “dli”, mas alguma coisa se impôs, penso que foi o inconsciente, e resolvi deixar, já que navegamos nessas águas turvas da sexualidade, em última análise estruturada discursivamente, criada pela linguagem, marcada de ressonâncias, recalques, defesas. Contraceptivo ou não, o “diu/dli” é definido como uma “modalidade de técnica mãe, resultante da mistura dos discursos direto e indireto, sendo um processo de grande efeito estilístico”, segundo a Wikipedia. Mistura e mãe no meio. “Não há marcas que indiquem a separação da fala do narrador da fala da personagem, como os verbos de elocução”, continua. “O narrador pode não apenas reproduzir indiretamente as falas dos personagens, mas também o que eles não dizem, como pensamentos e sentimentos, além de poder incluir (grifo meu) ideias do próprio narrador, trazendo ambiguidade e riqueza de sentido ao texto.”
“Tanto Deleuze quanto Derrida”, diz Zizek, “organizam suas teorias através de uma leitura detalhada de outros filósofos, isto é, ambos rejeitam a utilização pré-kantiana, direta, não crítica, dos sistemas filosóficos. Para ambos, a filosofia de hoje pode ser praticada apenas à maneira da metafilosofia, como uma leitura de (outros) filósofos.”
Em outras palavras, a leitura nos implica como sujeitos que dão ou tiram algo de si e/ou do outro, num quase-incesto (ler “mãe” acima) ou até mesmo num incesto declarado, só que desta vez não apenas entre sujeitos, mas com a própria linguagem.
Zizek continua: “Mas, enquanto Derrida procede à maneira da desconstrução crítica, do enfraquecimento do texto ou autor interpretado, Deleuze, com sua sodomia, atribui ao filósofo interpretado sua posição mais secreta e se esforça para extraí-la dele. Assim sendo, enquanto Derrida se ocupa de uma ‘hermenêutica da suspeita’, Deleuze exercita uma benevolência excessiva para com o filósofo interpretado.”
O analista, tal como o filósofo, trabalha com a pontuação, mas não necessariamente para fazer sentido, e sim para abrir a “hiância”, justamente a falta de sentido em busca do real, condição para uma ressignificação. Na pontuação, destaca-se a importância dos sinais gráficos para a construção/desconstrução do texto, ou entonações da fala. “No nível material imediato, Derrida tem que recorrer, o tempo todo, às aspas, marcando suas citações, sinalizando que o conceito empregado não é realmente seu, enquanto Deleuze endossa tudo, falando diretamente através do autor interpretado em um discurso livre indireto sem aspas”, acentua Zizek.
Quem é mais subversivo? “… é fácil mostrar que a ‘benevolência’ de Deleuze é muito mais violenta e subversiva que a leitura de Derrida: sua enrabada produz verdadeiros monstros.”
Deleuze com Lacan? “Deleuze é aqui profundamente lacaniano”, diz Zizek. “Lacan não faz a mesma coisa em sua leitura de Kant ‘com Sade’? Jacques-Alain Miller certa vez caracterizou essa leitura com as mesmas palavras de Deleuze. O objetivo de Lacan é ‘pegar Kant por trás’, produzir o monstro sadista como um descendente do próprio Kant.” Agora, Zizek abre um parêntese para ler grande parte da história da filosofia como uma pegada por trás: “ ( E, a propósito, o mesmo não é válido também para a leitura de Heidegger dos fragmentos pré-socráticos? Ele não está, também, pegando Parmênides e Heráclito por trás? Sua extensiva explanação da ideia de Parmênides de que ‘Ser e pensamento são o mesmo’ não é uma das grandes sodomias da história da filosofia?”
Periga sobrar até para a Virgem. “O termo ‘concepção imaculada’ deve ser ligado à ideia, vinda da obra A Lógica do Sentido [de Deleuze], do fluxo do sentido como algo infértil, sem um poder causal adequado. A leitura deleuziana não acontece no nível da imbricação atual de causas e efeitos; ela está para as interpretações ‘realistas’ assim como a penetração anal está para a ‘correta’ penetração vaginal. Essa é a ‘verdade’ do discurso livre indireto de Deleuze: um procedimento de sodomia filosófica.”
Como já disse, o coitus a tergo aceita insuspeitadas posições nesse fantástico troca-troca. E Zizek está apenas repetindo o francês: “Deleuze introduz até mesmo variações dentro desse tema de pegar um filósofo por trás. Ele alega que, em seu livro sobre Nietzsche, as coisas mudaram de tal forma que foi Nietzsche quem o pegou por trás; Espinosa resistiu a ser pego por trás e assim por diante. Entretanto, Hegel é a exceção absoluta – como se essa exceção fosse constitutiva, uma espécie de proibição do incesto no âmbito deste ‘pegar filósofos por trás’, revelando a multitude de outros filósofos à disposição para a sodomia. E se estivermos, efetivamente, lidando aqui com a proibição do incesto? Isso significaria que, de forma não reconhecida, Hegel se encontra misteriosamente próximo a Deleuze.”
Agora, chegou a vez do revirão de Zizek: “Em suma, por que não deveríamos nos arriscar a pegar por trás o próprio Deleuze e nos encarregarmos da prática da sodomia hegeliana de Deleuze? Nisso consiste o objetivo final do presente livreto. Que monstro surgiria se encenássemos a horrível cena na qual o espectro de Hegel pegasse Deleuze por trás? Como seria a descendência dessa imaculada concepção? Será que Hegel é realmente o único filósofo que é ‘insodomizável’, que não pode ser pego por trás? E se, pelo contrário, Hegel for o maior e único auto-sodomita da história da filosofia? E se o ‘método dialético’ for o método da auto-sodomia permanente? Sade certa vez escreveu que o prazer sexual supremo para um homem é o de se penetrar analmente (ter um pênis suficientemente longo e plástico que possa ser dobrado mesmo quando ereto, de tal forma que seja possível a realização disso) – talvez, esse círculo fechado de auto-sodomia seja a ‘verdade’ do Círculo hegeliano. (Existe, contudo, uma distinção entre Deleuze e Hegel-Lacan no que diz respeito a exercer a filosofia como sodomia: enquanto o próprio Deleuze realiza o ato de sodomia, Hegel e Lacan adotam a posição do observador perverso que encena o espetáculo da sodomia e depois fica esperando para ver qual será o resultado. Lacan, portanto, prepara a cena de Sade pegando Kant por trás – é assim que se deve ler “Kant com Sade” – para ver o monstro de Kant-Sade nascer; e Hegel é, além disso, o observador de um edifício filosófico que se sodomiza, gerando, assim, o monstro de outra filosofia.” Quem diria.