Mesmo com o aumento de países que passaram a adotar estratégias de prevenção ao suicídio, uma pessoa ainda se suicida a cada 40 segundos no mundo, como aponta o último relatório global da Organização Mundial da Saúde (OMS), apresentado em 2019. A atual pandemia de coronavírus pode, infelizmente, favorecer o recrudescimento desse número, pois, como se tem visto, a Itália, devastada pelo medo e pelo pânico, vem testemunhando, paralelo à pandemia, o desencadeamento de um trágico fenômeno: o suicídio de pessoas diagnosticadas com a Covid-19. O país tem comprovado que todos os dias aumenta o número de pessoas que tiram a própria vida com o intuito de não ter de enfrentar a doença.
O suicídio é um tema delicado, repleto de tabus e que, além das discussões no âmbito da saúde e do direito, encontra-se presente na literatura e na filosofia. Mas como o tema do suicídio se apresenta na literatura? Pode a literatura, com o esteio filosófico, contribuir para uma reflexão acerca da questão do suicídio? Possivelmente a obra de Fiódor Dostoiévski e de Albert Camus tem elementos suficientes para nos auxiliar a pensar o tema do suicídio.
Narrativas densas e um rol de intrincados personagens delineiam os escritos de Dostoiévski. Seus livros seguem promovendo arrebatamento e inquietação naqueles que se sentem desafiados a mergulhar no seu universo. Repousar a vista nas páginas escritas por Dostoiévski se configura em uma atividade desafiadora porque o seu universo é marcado por verborragias, antagonismos e demasiadas ruminações que fatalmente vão trazer mais perturbações ao leitor que aceita o desafio de lê-lo do que serenidade; mas também o enriquecerá ao fomentar um alargamento de seus horizontes concernente aos dramas humanos universais e aos dramas das paixões atemporais que afetam as nossas almas.
Entre a multiplicidade de temas e as controvérsias que encontramos nos escritos de Dostoiévski, sem dúvida, o tema do suicídio ocupa um lugar de destaque. Tema que igualmente se faz presente na obra de outros clássicos da literatura. Uma breve reminiscência nos conduz facilmente a três célebres romances nos quais a questão do suicídio é inserida nas histórias de forma decisiva e nos convidam a algum tipo de reflexão: O Sofrimento do Jovem Werther, de Goethe; Madame Bovary, de Flaubert, e Anna Karenina, de Tolstói. Nessas três obras, certificam-se três suicídios. Cada um perpetrado à sua maneira e tendo como cerne questões inerentes aos relacionamentos amorosos. Em tais casos, na medida em que as desventuras e desilusões dos personagens vão se expandindo, suas vidas passam a adquirir tonalidades cada vez mais sombrias que culminam em finais terrivelmente trágicos.
No século XX, Dostoiévski é retomado especialmente por Camus. No que tange à questão do suicídio nos textos do escritor russo, Camus pode nos fornecer uma importante chave de compreensão. Em seu ensaio O Mito de Sísifo, em que evidencia o mundo como um lugar marcado por irracionalidades que remete a Sísifo – figura mitológica que, condenado pelos deuses a empurrar ininterruptamente uma pedra até o alto da montanha, de onde ela torna a cair, expressa a inutilidade de seu trabalho e a falta de esperança –, o filósofo franco-argelino pinta um quadro sobre o vazio que caracteriza a existência humana. No primeiro capítulo desse ensaio, lemos a insigne frase de Camus: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”. A partir dessa abertura impactante, o filósofo convida o leitor a percorrer um ambiente composto de diversas referências filosóficas e literárias. Entre elas, evidentemente, Dostoiévski.
Camus inclui Dostoiévski no panteão dos romancistas filósofos no qual também estão Kafka e Proust. Os grandes romancistas são romancistas filósofos. Aqueles que, ao decidirem escrever mais com imagens do que propriamente com raciocínios, alicerçam seus pensamentos convencidos da ineficácia de todo princípio de explicação e convictos do valor da mensagem edificadora da aparência sensível. Enxergam a obra como um fim e simultaneamente como um princípio. O romance filosófico se inscreve como um mecanismo que nos possibilita ter acesso a um tipo de conhecimento, que é, concomitantemente, relativo e abundante, detentor do fascínio inicial e da elucubração frutífera.
Todos os heróis de Dostoiévski se indagam a respeito do sentido da vida, afirma Camus. Nos romances de Dostoiévski, o problema do sentido da vida é discutido com ferocidade, sugere alguns desdobramentos e parece apenas anuir a saídas drásticas. O escritor russo explana sobre essas “saídas” e como elas podem repercutir na vida de um homem. Essa reflexão conduz Dostoiévski ao que ele denomina em seu Diário de um Escritor de “suicídio lógico”. Na interpretação inicial de Camus, tal espécime de suicídio pode se ancorar no pressuposto de que “a existência humana é um absurdo perfeito para quem não tem fé na imortalidade”. O suicida lógico ceifa a própria vida porque se encontra dilacerado por um estado psíquico de frequente confusão e a constatação da falta de sentido da vida. Por um determinado ângulo, ele vai à desforra. Vinga-se. Refere-se à forma que ele descobre para não ser engolido pela confusão que o consome. Essa é a primeira impressão, mas não definitiva.
Kirilov, personagem do romance Os Demônios, personifica essa problemática e pode ser identificado como um adepto do suicídio lógico. Lê-se na referida obra que Kirilov quer retirar a própria vida porque “esta é sua ideia”. É uma ideia que ele vai entabulando para justificar a sua própria morte. Em seu Diário, Kirilov estabelece a seguinte reflexão: “sinto que Deus é necessário e que é preciso que exista. Mas sei que não existe, nem pode existir” e se indaga: “Como você não compreende que esta é uma razão suficiente para se matar?” Arquiteta então o seu suicídio misturando revolta e liberdade, concluindo que “Eu me matarei para afirmar minha insubordinação, minha nova e terrível liberdade”. Aos olhos de Camus, no final das contas, Kirilov não se suicida por vingança, mas sim por revolta. Kirilov é um personagem absurdo, com a ressalva primordial: ele se mata. Kirilov formula um raciocínio para justificar o seu suicídio e convencer a si próprio. Tal raciocínio se torna classicamente claro na seguinte formulação: “se Deus não existe, Kirilov é deus. Se Deus não existe, Kirilov deve se matar. Kirilov deve se matar, então, para ser deus”. Trata-se de uma lógica absurda, mas é a que Kirilov necessita para se desmaterializar. O instigante, porém, é a necessidade que ele tem de dar sentido à inexistência de Deus.
A discussão em torno do suicídio na obra de Dostoiévski não se esgota em Os Demônios, se estende a outros de seus escritos. Tomemos outro exemplo: O Sonho de um Homem Ridículo. Denominada pelo próprio Dostoiévski como uma narrativa fantástica, no conto mencionado o narrador, que se autodenomina “um homem ridículo”, e afirma que quando mais estudava, mas aprendia que era ridículo, amadurece por um tempo a ideia de se matar e decide firmemente que deve fazê-lo. Embora sendo pobre, compra um bom revólver, carrega-o e guarda-o em uma gaveta. Passados dois meses, o revólver ainda permanecia na gaveta e durante esse tempo todos os dias o narrador voltava para casa pensando que naquele dia se mataria. Até que finalmente decide que tiraria sua própria vida naquela noite sem falta. Senta-se à mesa com a face circunspecta, retira a arma da gaveta e se indaga: “é assim?”. E aparentemente seguro responde a si mesmo: “é assim”. Isto é, “vou me matar”. Tinha certeza que seria naquela noite, mas confusamente não sabia ao certo durante quanto tempo iria permanecer à mesa antes de retirar a própria vida.
Acometido pela lembrança recente de uma menina que havia tentado interceptá-lo na rua aparentemente buscando ajuda para a sua mãe e, em seguida, por algumas divagações estranhas que gravitavam na possibilidade de viver em outro planeta e, caso cometesse um ato vil, se ele iria sentir vergonha ou seria indiferente ao ato, e, mesmo decidido em se desmaterializar, em se transformar em um nada absoluto, o narrador, tendo o revólver carregado à sua frente, de maneira enigmática e atípica adormece. Inicia-se então um sonho fabuloso que remete ao mito da Idade de Ouro, de uma utopia social, no qual as pessoas viviam uma vida plena em comunidade, repleta de harmonia, sabedoria, até serem contaminadas pelo veneno da autoconsciência. Ao acordar após esse sonho fantástico, o narrador olha para o revólver à sua frente e o empurra para longe. Ergue os braços louvando a vida, a verdade eterna e cai em prantos. Desiste de se matar.
Retomando o relatório da OMS, atesta-se que a maior causa dos suicídios tem como gatilho a depressão. Em uma sociedade cada vez mais ansiosa e que busca subterfúgios químicos para maquiar sentimentos naturais como a tristeza e as dores da alma em geral, também se verifica o alvorecer de depressivos funcionais, pessoas que funcionam cotidianamente com sorrisos que camuflam suas dores e realidades internas. Tendo em vista o fenômeno do suicídio, o que se pode concluir a partir do percurso literário e quiçá filosófico que trilhamos? É possível afirmar que, tratando-se da obra de Dostoiévski, enquanto constatam-se em Kirilov e no narrador de O Sonho de um Homem Ridículo profundos diálogos internos protagonizados por homens atormentados por pensamentos fúnebres em face de uma vida sem sentido, e que enxergam o suicídio como uma clara possibilidade a ser concretizada, com Camus aprendemos que a necessidade do homem de conferir sentido à vida pode ser concebida como um problema capaz de guiá-lo ao suicídio. A vida em si não tem sentido algum e, quanto menos sentido se buscar nela, melhor ela poderá ser vivida. Para se viver uma vida plena é necessário acolhê-la e afirmá-la como uma experiência misteriosa, imprevisível, trágica, complexa e ter-se a consciência do seu absurdo, da sua ausência de sentido.