Era um dia sem graça, que só prometia o tédio mais desprezível, pois eu estava de folga e não tinha decidido ainda o que fazer da minha vida, a não ser o plano de vadiar com um bom romance de detetive, deitado na cama, à espera do enigma. Afinal, depois de tanto desassossego, perguntei-me eu, pois estava mesmo sem imaginação, sem rumo e sem claridade:
“O que é a crônica?”
A despeito da quantidade de gente que habita o planeta, somente alguns poucos, por mais notável que pareça, nasceram para escrever crônicas.
Graças ao darwinismo, a seleção natural só permitiu um Marais, um Bach, um Haendel, um Beethoven, um Shostakovich, um Flaubert, um Proust, um Corot, um etc.
Na rubrica dos mais capazes e criativos, ou seja, dos geniais, a Natureza sempre teve a última palavra e a Cultura, a primeira, se é que vocês decodificam esse pormenor, cujo acaso também é uma sutileza que, ao longo do tempo, garante a permanência das pessoas refinadas que esbanjam estilo e delicadeza.
Genes criativos ou malignos, quem consegue hoje escrever com galhardia, leveza e, por que não dizê-lo?, com lirismo e originalidade, humor e blasfêmia – e com mais tudo aquilo que pode ser incluído no verbete “crônica dos que questionam a crônica”?
Eu vos pergunto, senhores, e não sei a resposta, porque nunca soube interpretar as belezas e as agruras deste mundo. Porque não nasci em Cachoeiro de Itapemirim nem sofri pela morte de um pé de caju.
Ora, eu posso até tentar responder, mas para que esquentar a moleira?
Desde quando passei a lê-las e a compará-las, a admirá-las e a percebê-las como belos exemplos literários, desde quando Rubem Braga ascendeu ao altar da minha devoção, o meu entendimento do gênero passou a incluir sopros de indignidade e de poesia, de estranheza e de engajamento, de paixão e de ironia – e de humor, evidentemente. Tudo o que a crônica pode encerrar em suas linhas luminosas.
Os tais genes capixabas, meu deus!
Como se fosse uma profecia para um ateu, os cidadãos de Cachoeiro de Itapemirim gritaram a uma só voz, todos apontando severamente para o mar:
“Vá, Rubem Braga, seja o renovador da crônica brasileira!”
O velho Rubem, como sabeis, botou pra quebrar, sem perder o seu encanto pelos passarinhos e a sua vocação para escrever o simples com sintaxe de sabiá.
Mesmo com o apoio de todos os manuais, escrever não é apenas obedecer a regras de escrita – antes de tudo, é um jeito de ser desafinado. Ou seja, se o digo pela metade, é ser o chefe da orquestra, um Bruno Walter, se não for pedir muito.
“O desafio da maldade contra o santo guerreiro”, disse-o alguém, há muito tempo, num momento de confronto, em que o preto jamais poderá ser o branco.
Hoje, somos todos iguais, senhores, pois o projétil voa, e não escolhe alvos. Posso até dizê-lo de outro modo, citando o velho capitão do mato: essa azeitona escolhe, sim, as pessoas de cor preta.
Nestes dias de trabucos e de brucutus, escrever nunca se tornou tão necessário para que nós saibamos que as balas sibilam em todos os lugares, a marca do Estado no corpo de centenas de vítimas. Há uma matança consentida, generalizada, abram os olhos, ó manos da quebrada!
Se uma crônica pode ser escrita para expressar algum sentimento, eu me sentiria recompensado se essa mãe, cujo filho foi assassinado em Paraisópolis por policiais militares, encontrasse nestas linhas um mínimo de conforto, pois esse desejo é o pobre verbo que posso oferecer para acalentá-la na hora mais escura. Nessa favela, essa mãe são muitas.
Por mais que escreva, não sei o que é uma crônica, assim como não sei como funciona a Justiça para os desvalidos, os pretos, os índios, os sem emprego, os pés-rapados, os zé-ninguém. Eu até que sei, mas ai que preguiça de bater boca com os idiotas.
Apesar dos dias ensolarados e das noites insones, eu sei muito bem que escrever um texto – que pingou na minha telha num dia chuvoso – não é como abrir a torneira do tanque nem acender a boca do fogão.
E, diante de tantos episódios de violência absurda e de intimidação à beleza, talvez eu possa reafirmar agora a crença de que a crônica sempre foi o front do bom combate, a luta contra a barbárie, a voz dos que a perderam, o que mais vocês quiserem, se isso de algum modo afugentar para o fim do mundo o ser nefasto que nos envergonha todos os dias.