Data venia, mot d’ordre jurídico em busca da lei, que se lê Lei em psicanálise, maiúsculo desejo de lalar, lalinguar, para outro laralá. Do samba. Portanto, passagem da obsessão à obsessividade, da obsessão que precisa da permissão do Outro, sobretudo do perdão do Outro pelo abrigo no peito de sentimentos assim de matar o Outro, o outro, a outra, caros entes queridos, caros amigos, caros desejos, caríssimos.
… Brincar com as minigráficas pontuações como só os poetas. Passagem, da obsessão para a obsessividade, por ali, dando uma volta na esquina da perversão curada pela père–version, sublimação quando se acredita em cura, que não seja uma curra à la João de Deus, de muitos seguidores em Goiás, pero que las hay… Vem de longe, dessas procissões medievais de duzentos anos, duzentinhos. Bruxas, feitiços, a “lama do ocultismo” que irritava Freud, que de Jung se irritava pelo dizer, por dizer.
Passagem pela minima moralia da sublimação, que te amaria muito mais, Adorno, se amasses o jazz, mas tu o amassaste, paixão musical esconsa. Portanto, back to mithology, que em inglês fica mais firme.
Devemos respeitar Cronos, afinal ele devora seus filhos, dele e dos outros, devoração de que não estamos excluídos, pega tua self de cinco anos atrás, os insultos do tempo, pois se há um lugar onde a exceção não se dá bem, não se cria, como diz o povo do funk, fim da linha para ricos e pobres, o lugar é a casa de Cronos.
Para quem não me entendeu, e depois de tanto tempo, como se eu falasse a língua incompreensível de Hermes, o mensageiro, justo ele, e não o outro Hermes Trismegisto, nessa absurda condição de nos terem os deuses doado a linguagem e feito dela nossa salvação e perdição ao mesmo tempo, phármakon, logos, razão e linguagem, sina.
Meu Amorte no espelho dos Quintanares falava d’isso. Meu Os barões da psicanálise também. Meu A psicanálise perde o grande teórico/Jaques Lacan não menos. E também Por uma antologia do impossível. E ainda a série Meu mal de arquivo num baú de espantos.
De volta à mitologia, para dela sair, frequentar o lugar do analista e medir seu alcance. Nise da Silveira, frustrada com a psiquiatria organicista, busca o consolo de Jung, que lhe diz: “Você já estudou mitologia? Sem ela, não vai entender nada.” Fernando Pessoa: “o mito é o nada que é tudo”. Não adianta chamar de maluco o poeta do “sol nulo dos dias vãos”, o poeta se livrando dos desassossegos, se livrando, se fazendo livro livre entrega. O poder dos editores pode ser avaliado pela tese de Philippe Julien solidário de Lacan: a cura da psicose se dá pela passagem ao público. Sair do privado. Uma aposta. A de Lacan. Que lutava pela edição de textos dos “seus” psicóticos. Pagando pra ver. Eloí Calage recusada 13 vezes por 13 editores não não não não até que… prêmio nacional de literatura do Paraná. Devemos repensar o poder dos editores. Alguém precisa dizer que eles também cometem suas maldades, ora pois. E repensar o poder da fé, que não deveria ser abandonada aos obsessivos religiosos. E repensar o poder da política, que não deveria ficar restrito aos políticos, esses que estão concorrendo com os militares (os inimigos da humanidade, segundo Lacan) para ver quem fica para sempre com o bastão. Tudo por um pau, da palavra. E a psicanálise, deve ser deixada exclusivamente para os analistas? Todo mundo sabe que não.
Está na hora, disse Lacan, de examinarmos a incidência do tempo na psicanálise. Na hora, Cronos. Serás destituído? A ver. E deu o sacolejo que deu. Às vezes foi puro esculacho. Seguidores se “legitimam”, como qualquer obsessivo pedindo permissão: pé na bunda, mão na bolsa, não resistência a qualquer rabo de saia, compulsão, o escracho é cortante, mais jamais n’abolirá le hasard. A nomenclatura do tempo lógico.
Uma saída da psicose? Os bonecos de carnaval em Recife. A rigidez – o grande esforço, a tentativa de se manter de pé, contra tudo, contra todos, erguer-se, sair do desamparo – a Hilflosigkeit freudiana – da primordial quadrupedidice para a bipedia, de quatro para dois, privilégio da visão sobre o olfato (por isso é tão difícil tirar o dedo do nariz nos tempos da pandemia, há que reconhecer a pulsão olfativa) – rigidez delirante, tentativa de cura, pelo frevo, pelo samba, e o que mais vier. Palmas para Nise. Sertaneja. Frágil-Forte. Alagoas. Amor seco, amor úmido, chuva. Sequidão sem lágrimas de angústia de Graciliano. Os dois se amando na prisão da ditadura de Getúlio. Ditadores, pra que vos quero? Sois absolutamente dispensáveis.
Agora mesmo – co-incidência, a incidência do Inconsciente, que já foi chamado de deus, de Real, coisas assim – toca no rádio Nana Caymmi (bolsonarista!) cantando Resposta ao tempo, a hybris de Aldyr Blanc, a bela hybris, a bela insolência de pretender ganhar do tempo. O direito humano de espernear, homem contra deus. Ulisses passou por essa. Qual!, diria minha vizinha do Méier, a calma e boa Dona Zélia. Qual!
Um fogo passou dentro de mim que não tive jeito de segurar. Preciso aprender os mistérios do mundo pra te ensinar (?) Quem, eu, logo eu? Sou uma criança, não entendo nada. Mas a canção é bonita, chama-se Mistérios, de Joyce Moreno e Maurício Maestro. Bela na voz de Joyce, bela na voz de Milton, reconhecidamente a voz de Deus (deus?).
Que me fizeram de música (música ao longe, de Érico Veríssimo, solos de clarineta de um músico docemente frustrado, mas que, no seu filho Luiz Fernando, o saxofonista realiza o desejo do pai), foi por isso. Puseram o gostinho na boca, depois roubaram o pirulito, puxaram o tapete, e com isso, agora eu vivo a cantar que nem a Lili rai lou, ré, ré.
Grande besteira masculina, essa de querer ensinar uma mulher. Tá lá no My fair lady. Quebramos a cara sempre, Cronos. Bancamos o demiurgo. E a mulher só dando corda (eu disse a mulher, não a histérica). O filme se baseia na peça Pigmalião, de Bernard Shaw. Pigmalião era um rei antigo da ilha de Chipre. Também era escultor. Desiludido com a falta de pudor das mulheres, resolve fazer uma estátua. E se apaixona por ela. Afrodite dele se apieda e faz com que a estátua se transforme em mulher. E assim se faz um casamento, narcísico, como sempre. Em My fair lady, a mulher do povo se transforma numa dama da alta sociedade. Grana, como sempre.
Foi assim no início, Linda. Toda história de amor começa assim. Mas agora já não és minha costela de Adão, arranjaste um novo amor. Ensinar não mais. Um vento passou dentro de ti que não tiveste jeito de segurar. Ela declarou recentemente que a meu lado não tem mais prazer. O engraçado é que a costela de Adão separa o homem de si, de sua pretensa inteireza e lhe deixa um buraco que ele passa a vida tentando preencher. Isso enche.
Molambo, eu sei que vocês vão dizer que é tudo mentira, que não pode ser, mas que depois de tudo que ela me fez eu jamais deveria aceitá-la outra vez, bem sei que assim procedendo me exponho ao desprezo de todos vocês, lamento, mas fiquem sabendo que ela voltou e comigo ficou, ficou pra matar a saudade, a tremenda saudade que não me deixou, que não me deu sossego um momento sequer desde o dia em que ela me abandonou, ficou pra impedir que a loucura fizesse de mim um molambo qualquer, ficou, desta vez para sempre, se Deus quiser, foi o que disseram Augusto Mesquita e Jayme Florence. Uma vez molambo… para sempre… será que a salvação é pelos dejetos, como quer Jacques-Alain Miller? Fora, ideal sublimatório. Somos menos que nada.
Comigo não, me chamo Lupe, Lupicínio Rodrigues, sou gaúcho, che, e embora seja da cornitude um master, às vezes reajo, e com o risco de pegar a Lei Maria da Penha, que nada… Não brinca, Lupe, os tempos mudaram. Feministas… bom, também não tem que exagerar no feminicídio, não era do meu tempo. Amor doía feito bicho de pé, quem queria tirar? Sucede que as empoderadas têm razão, a coisa passou dos limites. Mas, antes, que hoje parece antanho, pintou uma guria que queria me dar uma volta. Então, eu, Lupe, disse pra ela:
– Agora você vai ouvir aquilo que merece. As coisas ficam muito boas quando a gente esquece. Mas acontece que eu não me esqueci a sua covardia, a sua ingratidão, a judiaria (ih, Lupe, a turma do politicamente correto, sei não) que você um dia fez pro coitadinho do meu coração. Estas palavras que eu estou lhe mostrando têm uma verdade pura, nua e crua, eu estou lhe mostrando a porta da rua, pra que você saia sem eu lhe bater (caramba, Lupe). Já chega o tempo que eu fiquei sozinho, que eu fiquei sofrendo, que eu fiquei chorando, agora quando eu estou melhorando você me aparece pra me aborrecer.
Toada punk. E tem o nome de Judiaria, vê se pode, o tempo. Eu canto de mansinho, tem uma turma que acha que por isso eu não sou de nada. Mas a cornitude é toda inventada. A mulher do Lupe confirmou numa entrevista no programa Ensaio na TV Cultura. De outro modo não ficaria bem pra ela. As mulheres querem ser amadas como se fossem únicas.
E essa estória vem do começo dos tempos, dos primórdios da mitologia. A grega conta o ciúme de Medeia (a verdadeira mulher, segundo Lacan, o que deixa a mulherada enfurecida). Pois ela não foi capaz de matar os filhos que teve com Jasão por puro ciúme, o mais social dos afetos, segundo ainda o mestre parisiense? Pintou a outra. Nada mais enfurecedor. Lacan: entre ser mãe e ser mulher, ela não teve dúvida. Já correu muita tinta (tinta ainda corre? Sinal dos tempos. Luva não caía mais, pelo menos as de pelica, ou de couro, porque hoje a moda pandêmica lhe trouxe de volta e não vai dar pra todo mundo, como acontece com todas as coisas). Já correu muita tinta para explicar a crueldade feminina. Mas, hoje, as empoderadas que se cuidem, e as sem poder também. O psicanalista Contardo Caligaris disse na TV Cultura que todos os homens são misóginos, odeiam mulheres. Há que partir daí. Sem deixar de lado que foram mulheres-mães que nos manipularam o bilau e o bumbum e a xereca (xana, prefere a amiga poeta) com mucho gusto e às vezes muito ódio. Donde vem o ódio obscuro da menina por sua mãe? A ponta do iceberg está em Sonata de outono, de Bergman. Por isso há poucos relatos de incidência das perversões nas mulheres, segundo Lacan. As mães fecharam a tampa? Que volta terá dado na cabecinha de sua majestade o bebê tão fofinho que acabou virando machista e misógino? A vingança pela projeção narcísica dos pais? O retorno de um narcisismo não dito, recalcado? Proposta: analisar a misoginia para entender a sempre atual guerra dos sexos. Um pouco de paz no cabaré de cegos.
Um vento também acabou de passar indagorinha pelo quintal de casa, área dos papos, papinhas, comilanças e bebelanças. Não vê que derrubou o relógio de madeira, tipo relíquia fake Grande Hotel que se estabacou no chão de concreto fazendo um barulhão.
Eu, lavando louça pra organizar o pensero, não tive jeito de me segurar. Pensei cá comigo, pois estava só, não tinha mais ninguém em casa (depois vamos falar dessa estória de solidão, isolamento, que Marx chamava de robinsonadas da economia política burguesa), pensei: é hora de minha morte, eu escrevendo sobre Cronos e aparecendo toda hora umas indiretíssimas sobre o tempo? Ai, ai, ai, Paloma noiada, que pretensão de querer saber, bom mas eu compartilho com Freud também suas besteiras, fiel é fiel. E por que Paloma, por que no feminino? Calma, Bety, calma. Pura criação. Destilando o veneno da guerra, declinando, a ver se chegamos a não se sabe onde. Comunismo? É o nome do seu medo?
Menos, bem menos noiado, se tanto, Horus Vital Brazil dizia que pra levar a vida a contento, comer o mingau todinho, e com alegria, era indispensável levar a morte pousada no ombro, como Don Juan, o índio mexicano revelado por Castañeda, de quem já não se fala nesses tempos de misticismo sem mística, nesses tempos em que a conta bancária é o índice da espiritualidade. Os espiritualistas serão os maiores materialistas?
E se o “tempo lógico” de Lacan for apenas um caso particular do tempo cronológico? Dizer isso em certos lugares é correr risco de vida profissional. Mas dizer é só dizer, vale mais que o dito. O dizer que se esconde atrás do dito naquilo que se ouve, a brilhante fórmula de Lacan em O aturdito, o texto ilegível de Lacan justo porque, segundo uma mulher, Barbara Cassin, marca o ponto final da lógica aristotélica. O começo do fim da lógica masculina, que cederá à lógica dos sofistas, esta sim, feminina.
Sala de cirurgia. Vinte pras sete da manhã, inda deu pra ver antes do apagão caridoso da anestesia, antes de te meterem a faca. Pela vida. Que escorre. Tempo de validade, corpo acabando. O corpo é que te tem, você não é nem tem um corpo, presunçoso, ele é que vai embora aos poucos, às vezes sai correndo como se soubesse pra onde, escorre, ansioso. Pra quê? Pra nada, disse o poeta.
“Tu és aquele a quem odeias”, resumiu Lacan para o obsessivo. Pobre homem, pobre diabo. Duras palavras do Oráculo. “O mito individual do neurótico”, Lacan mostrou o narcisismo mortífero do obsessivo, que privatiza o mito universal. Como não se conter, se ele se sabe um assassino? Acorda, e o primeiro pensamento ao olhar sua dama é: “parece morta”. Comparar com o poeta Cruz e Sousa: “Voai, zéfiros mimosos/vagarosos/com cautela/Glaura bela está dormindo/Quanto é lindo o meu amor.” Ele pode, não o obsessivo.
O obsessivo está sempre atrasado. Too late, diz MDMagno, o que quer que façamos é tarde demais. Até quando se antecipa o obsessivo está atrasado, diz Lacan. Mas too late é bem diferente de só–depois, o tempo da psicanálise. Pessimismo da razão e otimismo da prática? Nem tanto, nem tanto, a obsessividade põe muitas coisas de pé. Questão de fé, que não deve ser deixada ao monopólio dos religiosos. Fé no inconsciente, fé nas surpresas da vida. Mesmo nos tempos de pandemia. Na quarentena, o sintoma cresce, o obsessivo dentro de sua jaula não para de limpá-la. Está no paraíso. No seu paraíso. Lavando as mãos, não saindo de casa, evitando o contato social, por vias tortas ele contribui para deter o avanço do coronavírus.