Alguns pensadores não só contribuem diretamente para uma aproximação entre a filosofia e a literatura como também produzem obras literárias de relevância incontestável. O século XVIII representa um momento decisivo nessa aproximação. Observa-se nesse período não apenas transformações sociais e políticas, como uma vasta produção intelectual e artística na Europa. Essa conjuntura de efervescência cultural se configura em um período no qual é possível verificar com maior nitidez filósofos se aventurando nos âmbitos literários.
Destaca-se, nesse cenário, a título de exemplo, o romance A Religiosa (1778), de Denis Diderot. O livro narra o trágico destino de Suzanne, coagida pela família a ingressar em um convento, em função da sua origem bastarda. Depois de se converter a uma ordem religiosa, ela apela judicialmente almejando romper seus votos. Sofre uma derrota judicial, porém consegue posteriormente, com muito sacríficio, se livrar do monastério. Suzanne então busca abrigo em Paris, onde conhece e narra a sua história para o Marquês de Crosimare. O romance tem como cerne a luta de uma mulher sem vocação religiosa – enclausurada e ultrajada por humilhações e abusos sexuais – contra um destino ingrato. O propósito de Diderot parece ser o de disparar contundentes críticas à instituição do convento. Para tanto, ergue contra ela duas acusações distintas: a de nutrir uma cumplicidade com uma estrutura política e social perversa e a de respaldar-se em um estatuto que contraria a ordem da natureza.
Diderot sustenta que a sociabilidade se postula como a maior vocação da natureza humana. Convencionalmente, a obra pode ser lida como uma análise que busca demonstrar os malefícios da reclusão em instituições religiosas, que irremediavelmente favorece um extravio da precária natureza humana. Outra provável interpretação é a de que Diderot se empenhou no romance em avaliar as “relações entre o corpo, a razão e o imaginário”, como sugerem os estudos de Catherine Cusset, pesquisadora da obra de Diderot, para assim reorientar o seu conceito de liberdade. Uma vez que é mediante o corpo que as jovens religiosas e as superiores desatinam por conta de seus desejos sexuais reprimidos.
Por volta de dois séculos depois, Jean-Paul Sartre protagoniza um estreitamento ainda maior de laços entre filosofia e literatura. O que significa dizer que Sartre estreita mais os laços entre a filosofia e a literatura? Significa que podemos reconhecer a presença de noções do seu pensamento filosófico na literatura que ele produziu. Seguindo o rastro de suas publicações, nota-se que Sartre começa a adquirir evidência no mundo intelectual com o seu primeiro romance A Náusea (1938), narrado em forma de diário e que tem como personagem principal Antoine Roquentin, um historiador que se refugia numa província para escrever a biografia do debochado Marquês Rollebon. O historiador pode ser identificado como uma espécie de ícone de uma geração atônita com a ausência de sentido da vida e sem saber como, por que e para que tentar modificar as condições que a regem.
Em seguida, antes de lançar sua obra de filosofia mais expressiva, O Ser e o Nada (1943), e às vésperas da Segunda Guerra Mundial, Sartre publica O Muro (1939) – quase um testamento do que o filósofo existencialista espreitava e sentia, filtrado por suas reflexões morais, estéticas e políticas. O livro apresenta cinco narrativas que demonstram a estupefação do homem em face de um mundo fortemente agitado que se aproximava com extrema velocidade para a detonação de um violento combate armado até então nunca visto. Nesse contexto, os caminhos que poderiam guiar o homem ao exercício de sua liberdade parecem esvair-se como fumaça no ar e impulsioná-lo para um excessivo individualismo. Sartre instaura questões que evocam a consciência moral e política e nos possibilita estabelecer indagações, como: qual o papel do homem ante as contradições, as injustiças e os preconceitos do mundo? Pode ele simplesmente se omitir?
Muitas das evocações sartreanas nessas narrativas giram em torno de causas que infelizmente permanecem atuais: preconceitos sexuais e raciais. Entre os contos que compõem O Muro, sobressai-se A Infância de um Chefe, narrativa que parece sintetizar esses preconceitos; além de nos permitir reconhecer a noção de “má fé” presente em textos filosóficos de Sartre. Aspecto que explicita o estreitamento entre filosofia e literatura. Antes de explorar um pouco essa história, reportemos à aludida noção filosófica para um melhor entendimento. A ideia de “má fé” encontra-se ligada ao conceito de liberdade em Sartre. Para o filósofo francês, como se sabe, o homem é “condenado a ser livre”, liberdade entendida – em poucas palavras – como a possibilidade de fazer escolhas e agir a partir delas. O homem é tão somente o seu próprio projeto, se inventa a partir de suas escolhas e ações. É responsável pelo que escolhe.
Mas a liberdade só possui significado na ação, na capacidade do homem imprimir transformações na realidade. A experiência da liberdade suscita no homem a angústia da escolha. Geralmente as pessoas não contam com estruturas emocionais para lidar com o peso dessa angústia e é a fuga desse enfrentamento que Sartre chama de “má fé”. Contudo, não pretendo aqui avaliar se essa noção de liberdade pondera sobre a influência das circunstâncias, dos desejos e de aspectos sociais e psicológicos nas nossas escolhas e ações. Apenas vê-la como um meio para se compreender a noção de “má fé” e seu desdobramento, isto é, o “espírito de seriedade”. A “má fé”, assim, consiste em um fingimento, na atitude do homem que finge escolher, sem na realidade ter o feito. O homem que encarna a “má fé” é aquele que acredita que seu destino está definido, aceita os valores morais como se eles lhes fossem dados, consente com as “verdades” que lhe são apresentadas. Trata-se de um tipo de homem que, ao ser insidioso consigo mesmo, finge ser ele mesmo o agente de suas ações, uma vez que concordou com valores fornecidos sem questioná-los.
Em Sartre, a “má fé” não se refere precisamente a uma mentira (esta presume a existência de interlocutores para quem mentimos), ao passo que, para a “má fé”, o indivíduo utiliza a dissimulação para si mesmo com a finalidade de furtar-se de ter que tomar uma decisão e se responsabilizar por ela. Refere-se desse modo a uma recusa da liberdade, e esse tipo de conduta é por ele denominado de “espírito de seriedade”. O homem que assume esse espírito recusa a liberdade para se adequar ao conformismo, ao que é concebido como respeitabilidade na ordem fixada e vigente, bem como da tradição. Encontramos esse processo de renúncia da liberdade, “má fé” e assimilação do “espírito de seriedade” no conto A Infância de um Chefe.
Em resumo: o conto – repleto de influências psicanalíticas – narra a história de Lucien, filho único do casal burguês Senhor e Senhora Fleurier. Desde a infância, Lucien é cercado de mimos e bajulações pelos empregados de seu pai e, em seu mundo infantil, atestam-se algumas indagações sobre o tema da construção e afirmação da identidade. Interrogações como: “será que existo?”, “O que sou para os outros?” e “O que é o mundo que me cerca?” perpassam vários momentos do conto. Dois pontos da história me interessam aqui: o primeiro é o início da amizade de Lucien com Berliac e por intermédio dele com o pintor surrealista Bergère (com quem usa entorpecentes pela primeira vez e tem suas primeiras experiências sexuais). Para esse último, Lucien confessa as questões existenciais que o perturbam, como o desejo de suicidar. Bergère alenta Lucien ao convencê-lo de que tudo isso expressa um desajustamento, ingrediente imprescindível da criatividade estética e intelectual que, por exemplo, impulsionou a genialidade do poeta Rimbaud. Ao dar vazão à homossexualidade com Bergère, Lucien sente o peso da moralidade que o fustiga e decide “racionalmente” reprimir seus desejos sexuais, pois tal afirmação seria posteriormente prejudicial, afinal, “não esperava que os funcionários da empresa de seu pai aceitassem um homossexual como chefe”.
O segundo ponto é a filiação de Lucien, mediante um colega de escola, André Lemordant, a um grupo político nacionalista e racista. Nesse grupo, Lucien se torna um dos principais oradores e militantes. Lucien avaliava que, ao assumir essa ideologia política, conseguiria preencher o vazio existencial e ao mesmo tempo despertar seu espírito de líder (chefe) e resgatar a sua moralidade estremecida por sua relação com Bérgere. Há na história dois episódios bastante representativos das práticas antissemitas encabeçadas por Lucien: o primeiro diz respeito ao momento em que ele, juntamente com outros membros do grupo nacionalista, espanca um judeu e, o segundo, quando ao ser apresentado por sua irmã a um judeu, rejeita apertar a mão dele. Lucien emprega a “má fé” ao esquivar-se de confrontar a própria angústia e assume o “espirito de seriedade” ao recusar a liberdade de assumir quem de fato ele é, e, ainda, ao se munir de valores que o tornariam “dignos” de ser um verdadeiro chefe ou daquilo que se espera de um chefe.
As ideias presentes na narrativa de Sartre são bastante atuais. Mas que tal transpô-las para uma circunstância imaginária? Vamos supor, por exemplo, que em um futuro distante o planeta Terra esteja passando por uma pandemia devido a um vírus pouco conhecido, capaz de contaminar facilmente as pessoas e dizimar vidas em proporções descomunais com uma estranha velocidade (milhões de pessoas no planeta já teriam morrido por conta desse vírus, mesmo em países social e economicamente bem estruturados). As medidas mais eficazes para impedir a propagação do vírus consistiriam em: “evitar aglomerações”, “manter um isolamento social” e “adotar medidas básicas de higiene pessoal”. Entretanto, apenas um chefe de Estado no planeta Terra (presidente de um país de dimensões continentais e assolado por desigualdades sociais profundas) decide insuflar aglomerações e negligenciar os dados científicos e o número de mortos do seu país e dos outros países, e, igualmente confrontar as organizações que defendem a saúde e a vida, assim como os governadores do seu país, os poderes legislativo e judiciário e a imprensa; isso supostamente em defesa de “economia” e de “emprego” e do pressuposto de que as pessoas deveriam enfrentar o vírus com a força da “masculinidade”. Infere-se que a atitude do mencionado chefe de Estado, em princípio, se apresentaria como uma aposta macabra, uma postura potencialmente genocida, uma conduta moralmente homicida e inimaginável se for considerada a premissa fundamental de que a defesa da dignidade humana e da preservação da vida deve se sobrepor aos anseios por lucro de um sistema econômico perverso, somados à ambição desmedida de permanência e de concentração de poder de um político capcioso.
Todavia, cabe a seguinte indagação: a postura do hipotético chefe de Estado se enquadraria na noção de “má fé” e de “espírito de seriedade” expostas no pensamento de Sartre? A análise dessa questão parece um pouco escorregadia. Por conta disso, não ouso afirmar que a conduta do suposto chefe de Estado se enquadraria completamente no conceito de “má fé” e no “espírito de seriedade”. Pois, embora, por um lado, aparentemente poderia haver uma postura dissimulada do chefe de Estado para consigo mesmo, e que se estenderia aos seus correligionários demagogicamente, por outro, provavelmente existiria também um exercício de liberdade na medida em que ele estaria expressando a sua escolha ao advogar a suspensão da reclusão social e, ainda que, colocando em risco a vida de milhões de pessoas e demonstrando a ausência total de empatia pelo outro, restar-nos-ia saber se o presidente teria capacidade de assumir com a virilidade exaltada a responsabilidade pelos mortos e as dores das famílias que perderiam seus entes queridos ou se então adotaria um comportamento cínico e irresponsável após a catástrofe amplamente pré-anunciada se tornar uma amarga realidade.
Muito bom o texto acima. Além de identificar a filosofia na literatura, remete-as ao momento que experimentamos, em meio à tão avassadora pandemia. De modo que expõe a escolha de um governante que age no fio da grosseria e do absurdo, assumindo com seus pares essa posição. Continue na sua investigação e escrita, Vital, que só temos a ganhar.
Ótima reflexão Vital. Parabéns pelo texto!