Em Goiânia, há um modelo de cadeira que mora em muitas casas, habita o imaginário social e se alarga quintal afora, calçada adentro. Mais que uma cadeira é um campo gravitacional onde a casa se funde à cidade, movimento estático que alarga o quintal além do portão, que promove – por um momento do tempo no espaço – simbioses entre o público e o privado, destituindo seus rígidos limites. A cadeira que carrega o corpo parado direto ao direito à cidade. A cadeira que põe o corpo estático num movimento entre fronteiras, em que o corpo carrega a casa pela cadeira para o lado de fora, dando forma à experiência urbana.
A calçada vira então lugar de estar, contrasta com o carro que passa, propõe o corpo que fica. Indica relações possíveis e profundas entre a vizinhança. É tanto que há no ato deste sentar. Destitui o doméstico de dentro do lar. Promove intimidade com esse microimenso lugar-calçada disseminado por toda cidade.
É um tanto das possibilidades da cidade que mora na calçada. É por ela que se dá o elo entre a casa e a rua. A calçada não é só uma parte que faz a rua tocar a casa, ela carrega a possibilidade de fusão, de agregação. Na cadeira goiana, senta alguma rebeldia possível. Na cadeira nas calçadas de Goiânia descansa algo fora do tédio. Quando na calçada a cadeira é preguiça, na sala é tédio.
Casa-cadeira-calçada. (An)Dança das cadeiras.
Foi num destes bairros nada verticais de Goiânia, ruas com casas, cachorros ao vento. Mangueiras brincam com seu aroma dando o ar da praça. Pamonharia na rua principal [pobre o dicionário do editor de texto que não reconhece a palavra pamonharia, sublinhando-a de vermelho]. Barracas vendendo churrasco aos domingos. Um desses tantos bairros irradiantes de olfatos que aguçam a boca, bairros onde ainda moram afetos.
Foi num deles. E não foi de um dia pro outro.
Mas o fato é que, num destes domingos sólidos de sol, uma destas ruas acordou só calçada. O asfalto sumiu, a calçada cresceu, alargou, tomando a rua. Uma rua sem rua. Não era aquele calçadão próprio dos centros das cidades, mas uma calçada de bairro que, calada, cresceu até ser ela inteira. Foi de forma que cada lado da calçada avançou até o outro, silenciosamente se conectando.
Na frente das casas feitas de ladrilhos, estes se expandiram até o centro do que antes era asfalto, trechos de calçadas com árvores também avançaram. Pequenos canteiros se expandiram, já não mais nos cantos, agora também no centro do que agora era avesso à passagem. Os moradores não estranharam o sumiço do asfalto. A molecada rápido desenvolveu variações do futebol de rua, agora de calçada. Os velhos já não tinham mais a velocidade dos carros contra os códigos dos corpos lentos para temer. Bebês engatinhavam de dentro da sala até o mar de calçadas que tomou a rua feito maré que sobe avançando sobre areia.
A rua realizou seu sentido mais profundo, tomada totalmente pela calçada.
Foi de uma criança que surgiu a explicação. Segundo ela, a calçada foi crescendo, se alargando bem devagarinho, imperceptível ao tempo do adulto que ou dirige carro ou olha tela. A criança explica que, a cada vez que mais de uma dúzia de cadeiras eram preguiçosamente instaladas nas calçadas, elas cresciam mais um tiquin! Feito planta quando rega, feito frango quando cisca. Em uma noite quente de sábado à noite, a vizinhança toda tomou a calçada. Cadeiras colecionavam corporalidades nas cálidas calçadas. Risos e conversas do lado de fora, noite adentro. Pela manhã tudo que era rua já tinha virado calçada. Mas pra onde foi a rua? Sumiu no espaço-tempo o asfalto? Foi tomado por buraco negro destes que a gente achava que só tinha no espaço?
A rua que gradativamente subia para que a calçada se alargasse ia gradativamente crescendo num outro lugar da cidade, onde era a calçada que ia sumindo. No entorno do condomínio fechado, muros altos, risos raros, corpo trancado, vizinho desconhecido, encontros desaparecidos, a rua ia aumentando até que toda e qualquer fração de calçada desaparecesse.
Meses depois, andando por aqui, vi um punhado de crianças idosas plantando cadeiras, criando calçadas. Curiosamente cada cadeira portava um paraquedas colorido.
a virgínia woolf dizia que para uma mulher escrever precisaria de um teto todo seu, a maria valéria rezende, brasileira, me ensinou no romance 40 dias que para uma mulher escrever ela precisa entender a calçada, esse entre-lugar
Muito bom.
Vamos plantar cadeiras!
Maravilha de conto, Glauco.