[Coautores: Rafael Lopes Batista [1] e Weiny César Freitas Pinto[2]]
Gostaríamos de abordar neste ensaio a questão do relativismo moral a partir da sentença judicial recebida pelo personagem Meursault, no romance O Estrangeiro, de Albert Camus (1913-1960). Camus foi um filósofo franco-argelino ligado à corrente filosófica do “absurdismo”, corrente que procura refletir sobre o ser humano e a sua insistente busca de sentido para a vida, quando, na verdade, segundo o próprio filósofo, não há sentido nenhum. Tendo em vista que a obra de Camus é permeada por certo relativismo, vamos aproximá-lo da análise do filósofo austro-britânico Karl Popper (1902-1994), a respeito d’O Mito do Contexto, pequeno ensaio no qual o famoso filósofo da ciência nos fornece uma interessante chave de leitura crítica para a compreensão do fenômeno do relativismo, definindo-o da seguinte maneira:
[…] doutrina segundo a qual a verdade é relativa à nossa formação intelectual que, supostamente, determinará de algum modo o contexto dentro da qual somos capazes de pensar: a verdade mudaria assim de contexto para contexto. (POPPER, 1996, p. 55)
Julgamento jurídico-moral e contexto
De modo resumido, o romance de Camus inicia-se com a notícia da morte da mãe do personagem principal:
Mamãe morreu hoje. Ou, talvez, ontem. Eu não tenho certeza. O telegrama do Lar dizia: SUA MÃE FALECEU. FUNERAL AMANHÃ. SINCEROS PÊSAMES. O que deixa a questão mais duvidosa; poderia ter sido ontem. (CAMUS, 1942, p. 3)
Meursault, então, se dirige ao velório de sua mãe e não derrama sequer uma única lágrima, pelo contrário: ele dorme, toma café e fuma seu cigarro. No dia seguinte, volta à sua rotina, conhece uma moça, vai ao cinema com ela, e assim inicia uma relação supostamente amorosa, logo após enterrar sua mãe.
Posteriormente, em uma situação do acaso, Meursault comete um assassinato e acaba sendo preso e julgado. No julgamento, os fatos em relação aos quais ele é mais gravemente acusado dizem respeito às suas atitudes diante do velório da mãe e não ao assassinato cometido. O promotor argumenta buscando demonstrar que Meursault é desumano – utilizando como critério de humanidade a demonstração de afetos –, já que ele se mostrou totalmente indiferente à morte de sua mãe. Um ser humano que age de tal maneira seria uma ameaça para a sociedade, devendo assim ser punido severamente, com pena máxima aplicada pela lei, a pena de morte. O júri acata a argumentação do promotor e decide que ele deve ser condenado à guilhotina.
Camus não nos apresenta o fim do personagem, apenas sabemos que a obra se encerra com Meursault refletindo sobre sua morte e aguardando sua execução. Ao apresentar a jornada existencial do personagem, a obra levanta vários questionamentos importantes referentes à peculiar personagem Meursault, homem aparentemente alheio às condutas consideradas “normais”. O leitor chega ao fim de O Estrangeiro questionando-se, perplexo, acerca da sentença: como é possível aquele desfecho do julgamento? Como é possível um resultado tão forçosamente influenciado pelos princípios morais do agente acusatório?
O relativismo moral aí é evidente e suas consequências são graves para aquele que não se encontra no mesmo contexto. Defender sua própria moral, a custo do direito à vida do outro, não pode ser considerado de forma alguma justiça, mas sim um procedimento temerário e extremamente questionável. Meursault foi condenado não por seu ato criminoso e sim por seu contexto ser antagônico ao contexto predominante naquela sociedade. É aqui que se aplica a tese defendida por Popper em seu ensaio: a importância do diálogo crítico como arma contra o mito que é analisar a realidade simplesmente pelo contexto.
Choque cultural e superação das limitações contextuais
Chamam a atenção em O Estrangeiro o exagero e o preconceito do promotor, demonstrando crer que o aparente desdém de Meursault aos padrões morais daquele contexto deveria lhe render a condenação. Nesse sentido, seria plausível afirmar que a condenação é motivada por um relativismo moral. Quando o advogado de defesa questiona: “Meu cliente está sendo julgado por ter enterrado sua mãe ou por matar um homem?”, o promotor de acusação responde: “[…] acuso o prisioneiro de se comportar no funeral de sua mãe de uma forma que mostrava que ele já era um criminoso de coração […]” (CAMUS, 1942, pp. 97-98). De fato, Meursault é um personagem estranho, mas estranho a quê, a quem? Ao contexto e à moral corrente? Como superar, no âmbito das relações humanas, as perigosas barreiras colocadas pelos contextos?
Para esse problema, as contribuições de Popper parecem ser bastante úteis. O filósofo defende a importância do “choque de culturas”, ou seja, que é possível haver diálogo frutífero e racional entre contextos distintos.
[…] os parceiros desse choque se podem libertar de preconceitos dos quais não têm consciência ou de inconscientemente aceitarem […] Tal libertação pode ser o resultado da crítica desencadeada pelo choque de culturas. (POPPER, 1996, p. 75)
Segundo Popper, o “choque de culturas” elevaria o conhecimento, ultrapassando assim as adversidades que os contextos nos impõem. Com pequenos passos, podemos e devemos enriquecer nossa compreensão:
[…] podemos sair do nosso próprio contexto, da nossa própria prisão. E do mesmo modo que ultrapassar uma barreira linguística é difícil mas vale a pena – e provavelmente compensará os nossos esforços […] o mesmo acontece quando ultrapassamos a barreira de um contexto. (POPPER, 1996, p. 86)
Contextos diferentes são evidenciados na obra de Camus, mas apenas um destes contextos foi levado em conta no julgamento. E se tivesse havido um diálogo racional prévio entre as partes, será que Meursault teria sido condenado à morte? Não é nossa intenção aqui destituir de culpa a personagem principal de Camus, somente questionamos os motivos da pena. Este questionamento nos faz lembrar novamente de Popper: “Quais são as consequências da nossa tese ou teoria? Serão todas elas aceitáveis para nós?” (POPPER, 1996, p.85).
Ora, “[…] a doutrina do contexto fechado constitui sérios obstáculos à disposição de aprender com os outros […]” (POPPER, 1996, p. 70), sendo assim, universalizar um único e determinado contexto é fechar as portas para a aprendizagem e para o desenvolvimento do conhecimento humano, além, é claro, do risco evidente de incorrermos aí na criação de dogmas, o dogma do contexto, por exemplo. Desse modo, concluímos que julgamentos, como o descrito por Camus, ou seja, fechados num único e determinado contexto, não podem e não devem acontecer, pois suas consequências são nefastas. Assim, concordamos com a proposta de Popper: culturas distintas, contextos distintos, devem se chocar, não na clássica e velha lógica do vencedor-perdedor, mas para fazer avançar e enriquecer o conhecimento de ambas.
Referências
POPPER, Karl. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Lisboa: Edições 70, 1996.
CAMUS, Albert. O estrangeiro. Rio de Janeiro: Record, 1942.
[1] Professor de Filosofia na rede estadual de educação de Mato Grosso do Sul. E-mail: rafaeb26@gmail.com
[2] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto é o sexto da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.