Tsek, tsek, tsek, eu fiz assim, sem querer. Uma reação tipicamente mecânica, a cara de joão-ninguém, sem chance de conseguir de graça uma primeira-dama, daquelas que, apesar da grife que usam, quando nuas, gemem de forma escandalosa, como gatas no cio. Aí, como num filme de canastrões, ela lascou um tapa no meu rosto – chalept! Sua força raivosa pegou-me de surpresa, e doeu.
A mão bem aberta – e repentina – escondendo-se logo em seguida debaixo da mesa, como uma cobra que dá o bote e se retrai em seguida, o veneno escorrendo no lugar ofendido. A moça fervia, igual a um radiador fundido. Eu não estava prestando muita atenção nela, distraído com a minha bebida, quando a sua mão, num átimo, deixou o meu rosto em brasa. Um raio. Eu nem sei se gemi. A gente não deve brincar com ofídios. Sem mais nem menos, lembrei-me de que a sua mão sabia também fazer carícias, panteras que deslizam sedas sobre a pele, ronronando. Mas isso, esse detalhe, ficou lá atrás, bem antes de hoje. E foi um pensamento tolo que me veio à mente, como uma pluma no ar. Em todo o caso, o tapa doeu. Você sabe o que é conter a humilhação de uma bofetada em público?
Era um fim de tarde. Nós estávamos num bar do Setor Oeste. A gente só tinha bebido um pouco. Era só um programa descontraído, bem à toa, sem maiores pretensões, desses pelos quais você não dá um centavo furado, bom enquanto dura, se às vezes vai longe, com uma surpresa ou outra. Nós conversávamos sobre generalidades e, de modo inesperado, sem mais nem menos, ou seja, num deslize, começou aquele bate-boca improdutivo, mas oportuno (pelo menos para mim), sobre traição.
– Por que a mulher quer ser o samurai dos homens?
– Você é um filho da puta!, respondeu-me, enquanto desta vez, sem marcar bobeira, fiquei de olho em sua mão.
A verdade é que, havia já algum tempo, a gente não se entendia sobre uma porção de assuntos. Melindres de toda semana, os mais imprevisíveis. Na terça, trimmmmm: era o telefone que tocava, e eu: “Alô, meu bem, tudo azul?”, enquanto ela cobrava a minha presença na noite anterior; na quarta, uma conversa besta; na quinta, bom deixa pra lá, não vou dar toda a ficha dela de uma vez, porque, na sexta, era uma loucura: ela variava uma surpresa do Kama Sutra. No sábado, o meu pau estava imprestável, quieto e comovido pelo seu desempenho, no aconchego das minhas pernas, lagarto refestelado no seu ninho. Longe de tudo, no domingo, eu escutava música, estudava, lia jornais, ausente e distante dos embates devassos. Se ela me ligasse nesse dia, não falaria comigo, pois eu desligava o aparelho.
A respeito do significado da liberdade, só para citar um exemplo besta, eu me sentia o melhor e o maior homem do Universo, aquele que, nas bancas de revista, os cartunistas vendem aos montes; em outra interpretação, a menos previsível, ela parecia a Mulher-Gato, o horror do Don Juan. E me batia e me arranhava no momento em que – fissst – eu me protegia de suas garras – tarde demais: ficava sempre um sinal em meu corpo, por menor que fosse a agressão, os lanhos que, logo depois, como sulcos na carne lesada, ela curaria com a sua língua quente e úmida. Inveja inconsciente do herói, a Mulher-Gato tinha sérios problemas de autoafirmação, para os quais a minha carne poderia representar um sinal de restabelecimento. O meu corpo, entre outras coisas, era o pasto das felinas revanchistas. Mas isso era só um modo de dizer para desqualificá-la, porque, de heroína, ela não tinha nada. Era mesmo uma zinha qualquer, sem querer desmerecê-la. Uma mulher que, como quase todas, perseguia a sua glória. Travessias para o mundo das fantasias. Para o alto, na maior parte das vezes, se é que me entendes, bróder. Bah! Mulheres loucas! A misoginia, apesar dos clérigos, sempre foi o valhacouto dos don-juans de segunda.
– Você é um sacana, um desgraçado! – ela dizia, intoxicada de suas razões, a boca despejando vitupérios.
Pouco tempo depois, em outra atitude fora do figurino, seria mais durona. Eu, que julgava conhecê-la melhor do que ninguém, estaria a postos: a infantaria não pode desperdiçar balas. As nossas batalhas tinham muitas referências, algumas surrealistas, a maior parte ressentidas, outras repousavam nas páginas do Marquês de Sade. Por ser tanto e por não ser nada, quando desfeito, o amor se equipara às guerras.
Em guarda, autoconfiante, eu a ouvia como quem ouve os diálogos de um filme xarope, e fica entediado com tanto doce. Fora o tapa, era a segunda vez que me xingava impiedosamente naquela noite. As agressões verbais, porém, não doíam – elas só doem nos ouvidos afinados. Mas, ao seu modo, ela estava certa. Sabia por que eu tinha de ser o saco de pancadas. Havia um mês, não tinha como disfarçar, eu estava saindo às escâncaras com Rosa.
Rosa, a clássica palavra dos manuais de latim, o nome a partir do qual se fazem declinações: rosa, rosae. Certamente, ela descobrira por meio de sua rede de amizades e, sobretudo, pelos meus mais indiscretos sinais. Sem ter como disfarçar o meu novo interesse sexual, eu torcia para que ela soubesse logo, quanto antes melhor. A sua raiva era, pois, consentida, cuja melhor expressão traduzia-se pelo choro, entrecortado pelo tapa e pelos xingamentos. Nessa hora, nascia a mulher combativa, no meio do desmanche lacrimal. Rosa, a sua melhor amiga. Rosae.
Eu queria terminar o quanto antes o nosso relacionamento. A vida, ao menos para mim, abria inúmeras portas. Ou melhor: pernas – outras pernas, com novos relevos, cheiros, fluidos, arranhões, gemidos, gozos. Pernas à profusão, línguas obscenas procurando fendas.
– Assim não dá, meu anjo! Desse jeito, a gente se estraçalha antes do amanhecer.
Essa idiotice que eu falei, ao contrário do que pretendia, aumentou a sua esperança. Tem horas que sou mesmo babaca. É por isso que os retratos me fazem mal: é outro que sempre vejo, combalido, desfeito, horrível, um homem com o qual não me identifico.
Minha cara de desagrado era reconhecível, as nervuras do rosto instaladas aqui e ali. Eu não suportava mais os seus surtos de ciúme. Não era, portanto, a primeira vez. Nas outras ocasiões, mesmo sem motivo, ela atirava a bolsa no chão, arrebentava o despertador, insultava-me com as piores palavras, esperneava, ameaçava-me com os castigos mais cruéis, agredia as suas amigas, num teatro infantilizado e sem sentido: o Don Juan que morava em mim quase perdia o fôlego, com receio de que ela surtasse de vez. Não, não era ridículo: era uma cena engraçada de se ver, para os que gostam de ópera-bufa. A sua suspeita produzia cenas esquisitas. O seu corpo contorcia-se na fúria, como a dança de uma pomba-gira, insinuante e trêmulo. E eu estava ali mesmo à mão, com mais e com menos, enquanto ela provocava as minhas misérias. O réptil que atualizava as suas fantasias. Um corpo para ser adorado. As suas frestas eu as conhecia como um técnico que desmonta um conjunto. Como um relojoeiro. Rosas que se despetalam. Doces demais. Rosae. Pétalas de um mecanismo simples, mas precioso.
A ameaça de separação, um grito contido pelo receio do escândalo público – e tudo terminava depois entre lençóis, beijos molhados enxugando o ácido do ressentimento. O seu corpo esguio, longilíneo, com ondulações de músculos levemente esculpidos nas costas, no ventre e nas nádegas, escorria pelos meus braços, leve e perfumado, antecipando a minha flecha. De novo, a figura da serpente. Eu me enredava. E a estocava, sem nada que me fizesse parar, num frenesi hidráulico. Nada, aliás, me pararia naqueles momentos de intensa pulsação. Nem mesmo se ela fosse Eva, a fêmea primordial que provocou a confusão no Gênesis.
Não é preciso dizer que eu adorava transar com ela de manhã, de tarde, à noite, quando desse, apesar dos desentendimentos que decorriam por causa dos ciúmes. Há tanta besteira escrita sobre esse assunto – o ciúme –, que eu queria dizer a última: mais do que uma doença, o ciúme é feito de venenos sorrateiros, que amolecem o raciocínio, acordando o psicólogo vadio que às vezes se esconde debaixo dos lençóis. O ciumento alimenta as piores fantasias. Esponjas, como se vê, que inflam a imaginação: bobagens. Mas é melhor deixar esse assunto pra lá, nas rachaduras dos muros. Dos conceitos sem brechas.
Lembro-me do que ela disse num momento em que os seus temores ainda não representavam uma vazão de dor:
– Os homens têm argumentos mais do que insólitos. Para eles, tudo termina em boceta. E, se não há boceta, não há mulher, não há gozo. Não há nada. Só uma mulher que não foi penetrada.
– E o que você queria que eu fizesse? Ela me deu toda atenção, quase pulou em mim, esfregando-se louca em minhas pernas.
Foi o que eu disse num tom mais alterado, quase berrando, a minha cara moldando o desagrado que, desde esse dia, passaria a me acompanhar para sempre como uma mancha que nenhum dermatologista consegue remover. E, como lástima, a vergonha de ter me exacerbado no bar.
Oscilando de novo o seu humor, ela quase me acertou mais uma. Chalept! Apareceu de repente outra mão aberta contra o meu rosto, mas desse tabefe me safei a tempo. Desviar de sua mão pesada é fácil, se você não está distraído. Voo de besouro. A sua agressão apenas roçou-me discretamente o rosto. Eu estava começando a me interessar por esse jogo infausto. Uma rinha ordinária, típica de novela mexicana.
A verdade é que eu me sentia diminuído, como o Atchim, o mais doentinho dos sete catarrentos que, sempre que podia, espirrava dos caprichos da Branca de Neve. Um ser diminuto, para pensar na primeira simbolização que me ocorreu – mas um anão, em todo caso. Você, melhor do que ninguém, sabe: um homem e uma mulher, quando se juntam, causam sempre desperdícios. Quase sempre um deles se sente minúsculo ou maiúsculo. Como sempre, a briga dos tamanhos. Um homem e uma mulher, parece, têm algo a ver com estatura, vertigens, mesquinharias, poder, desencanto.
– Você me decepcionou. Como pôde fazer isso comigo? Canalha!
Para aliviar a barra, pedi licença e fui ao banheiro. Ali, no sanitário, no ambiente de azulejos brancos, debaixo do lavabo, uma barata, dessas que nunca terá a sorte de conhecer a dispensa de Bill Gates, decidia que rumo tomar. Para acabar com a sua dúvida, eu a esmaguei.
Lavei o rosto. Olhei-me, em seguida, no espelho – e não gostei do que vi: não era um Atchim que eu enxergava – a face contraída, os olhos descentrados, a mente suspensa –, mas um homem cansado e bem menor na sua convicção de Don Juan. Um homem, mas fora de suas entranhas. Sombras de alguém que não se agarra a nada. Bebi, ali mesmo, a minha abjeta invenção. E, para o que desse e viesse, fui ao encontro da mulher que não cansava de me enfeitiçar. O bobo, quando é desastrado mesmo, costuma esquecer as suas mancadas. Bobos, nós somos legião, bróder.
Quando pedimos a conta, ela tinha bebido quatro doses de uísque, o seu limite usual nas noites de farra e conversa. Da minha parte, eu não conto os uísques que traço pela vida. É por isso que odeio os economistas: os idiotas contam até palito de fósforos queimado.
Por acaso, numa dessas situações felizes, que podem suavizar o estrago de um encontro, surgiu do nada, um nada que não tem como ser classificado, um nada que, antes, era o silêncio de todas as amarguras – o trompete de Chet Baker, ou seja, o sopro cool, feito de prata e ouro, que é um jeito de descrever a vida. Eu estava com sorte. Há quanto tempo não ouvia “I’m a fool to want you”? Pedi para ela esperar um pouco. Aquela música exigia uma pausa sagrada, uma escuta de paz absoluta. A trégua, para homenagem ao deus. Diante do imprevisto, o garçom trouxe-nos outro uísque. Felizmente, e esse era um ponto a seu favor, ela curtia Chet Baker. Talvez, depois daquele encontro, ela passasse a curti-lo menos. Quem saberá?
“I’m a fool to want you
I’m a fool to want you
To want a love that can’t be true
A love that’s there for others too”
Eu gostava de vê-la ali, do jeito que a gente estava, com a tensão em grau menor, num bar tranquilo da cidade, localizado num bairro que tinha tudo para ser elegante nas suas variedades urbanas, se não fosse a especulação imobiliária que tudo modifica, num fim de tarde, que, a despeito de tudo, irradiava um encanto mais que inusitado. Encanto de céu de novembro que, no lusco-fusco, tinge de vermelho as nuvens do poente. Longe, no infinito, perturbadas apenas pela passagem repentina de um avião, que tornava tudo ainda mais surpreendente.
Observada sob qualquer ângulo, ela era linda, fora do comum, quanto a isso nenhuma discussão, uma beleza que combinava delicadeza e fúria. Vê-la assim, com o olhar distraído, tinha também frescor e ternura: a Mulher-Gato cedera um pouco a sua raiva, talvez pelo álcool, talvez por sua descrença e cansaço, talvez por minha ignorância a respeito das mulheres. Eu gostaria que ela estivesse daquele jeito pelo trompete e pelos gemidos de Chet Baker. Mas isso, no mínimo, não seria ela – a música que ela estava apreciando ali devia nascer de outra fonte, isto é, de sensações que indicavam rancor e solidão. De outro modo, o fraseado de Chet Baker jorrava transmitindo seivas que seriam melhor absorvidas em outro encontro. Diante dos nossos embates, eu pressentia sombras de sentimentos confusos e irreparáveis, tanto meus quanto dela. Quem estaria a salvo em ocasião semelhante?
A música nos envolvia afinal como um presságio ruim, uma nota triste.
Há quanto tempo nos relacionávamos? Seis, talvez sete anos, os quais, na realidade, não contavam muito como projeto de vida. O tempo, inclusive, não respirava a nosso favor. A gente se conhecera numa festa de amigos comuns. O de sempre: primeiro, você é apresentado e, depois, um puxa conversa com o outro. Conversa em festa de muita gente não presta pra nada. Isto é, não dá pra conversar muito tempo com uma só pessoa, porque você tem de circular e conversar com todo mundo. Foi por isso que eu a convidei para irmos ao terraço.
– Daqui de cima, a gente pode ver um disco voador, disse, pra ser engraçadinho.
Ela me seguiu com o seu drinque, enquanto eu lhe sugeri o lugar onde poderíamos ficar: um canto deserto com samambaias despencando do alto, sombrio e aconchegante, além de avencas que, no fundo, em cima de prateleiras, encobertas por ramos tenros, despencavam uma intimidade calorosa.
A cidade estava lá embaixo, espraiada em milhares de pontos luminosos. Foi quando ela colocou o seu copo sobre a amurada e, em seguida, para a minha surpresa e o meu deslumbramento, com um sorriso malicioso, levantou a blusa. Nem era preciso dizer nada. As epifanias são feitas para o alumbramento. Eu a desejei ali mesmo, naquele ambiente mesclado de sombra e clorofila, enquanto os seus sussurros lambuzavam-me, com palavras obscenas, segundos depois, a minha nuca. Entre perplexo e desnorteado, a minha mão, bem, aquela que sabe tudo, estava no lugar certo. Não havia umidade no ar, mas ela se desmanchava em líquidos, meu pau queria saltar para fora, louco como um animal que tentava escapar da jaula. Naquele momento, a danada seria capaz de provocar combustão espontânea.
Foi assim que tudo começou.
Tudo começou assim, na porra-louquice.
Agora, estávamos ali, naquele bar, num início de noite de novembro. Eu só queria sorvê-la mais uma vez, transformá-la novamente em uma barbie dos meus mais profanos desejos. Estava em jogo a minha tranquilidade de homem que só se sente feliz com muitas mulheres. A minha poligamia sobre a qual flutuo. Ela e Rosa. Eu precisava urgentemente das duas. Foder duas mulheres em dias alternados dava-me uma absurda sensação de poder. Ela, Rosa, Sílvia, Isaura, tantas… – eu queria foder todas, uma a uma, como um sátiro que bate ponto. Porém, ela não queria ser apenas mais uma fêmea da minha caderneta. No fundo, meu temor mais inconfessável era que o meu fascínio por ela acabasse me empurrando para o altar, na cerimônia burguesa de adeus aos prazeres do mundo. Nada mais apavorante do que encarnar o papel de abominável homem do lar, o provedor de comida para o frost-free, o vigilante de berço, o genro panaca que faz feira pra sogra. No caso, o Don Juan aqui, esse que vos escreve, bróder.
Após longa pausa, antes do início de outra música, quando os ânimos estavam aparentemente acalmados e o trompete silenciou-se, saímos do bar e acompanhei-a até o seu carro. Ela abriu a porta e entrou. Vi quando deu partida e manobrou-o em direção à rua. Já estava escuro. Por fim, assim que o veículo desapareceu na curva, não sei o que pensei. Também não pensei se voltaria a vê-la. Na realidade, a minha cabeça nesse momento estava vazia, quase oca, e meu coração, eu o pressenti, seco e desafinado. Talvez eu devesse procurar algum tipo de ajuda. Não importava o que aconteceria daí em diante. Por isso mesmo, voltei pro bar e pedi outro uísque.