Os anos 1970 marcaram outra reinvenção de Bob Dylan. O período que passou recluso com a família em Woodstock, recuperando-se do acidente de motocicleta de 1966 que se tornaria folclórico para a mitologia do cancionista, foi pedra angular para a negação da pecha, um verdadeiro fardo para ele, de “voz da geração” e platitudes similares.
Dylan realizou, after the crash, incursão pela música country e por temáticas menos prementes. Seu silêncio a respeito da Guerra do Vietnã, por exemplo, despertou ira em muitos saudosos das canções de protesto do início de sua carreira: A. J. Webberman, infame perseguidor do artista, chegou a fundar a Dylan Liberation Front, assediando-o na tentativa pitoresca de resgatar sua consciência política. O poeta, contudo, investiu com paixão naquilo que Greil Marcus chamaria de old, weird America, aludindo mormente ao folclore convoluto dos Estados Unidos. Em Crônicas: Volume Um (2004), as memórias de Dylan, a vontade de distanciar-se, na época, da presunção de sumidade da cultura pop e profeta do rock and roll é bastante explícita. Importa dizer que, ao cabo da década de 1970, portanto, ele lançaria o primeiro de uma série de álbuns gospels, Slow Train Coming (1979), contrariando qualquer expectativa de retorno às origens.
O mote religioso cresceu notavelmente no decurso dos anos anteriores, revelando letras de proximidade cada vez maior com conceitos teológicos como culpa, redenção e salvação, bastando escutar Knockin’ On Heaven’s Door (Pat Garrett & Billy The Kid, 1973), Forever Young (Planet Waves, 1974), Oh, Sister (Desire, 1976), New Pony e Señor (Tales of Yankee Power) (Street-Legal, 1978), dentre outros exemplos. Vislumbres dos livros bíblicos do Apocalipse e dos Provérbios são sobremodo relevantes nas produções do período e reverberarão no conjunto da obra de Dylan.
Enseja curiosidade o fato de, ao buscar distância do ofício de portador da mensagem de seu tempo e anunciador do caminho a ser seguido, Robert Allen Zimmerman tenha povoado suas letras com outros mensageiros e anunciadores – os anjos, arautos de Deus. Nos anos 1970, assim, ganharam lume as canções Three Angels (New Morning, 1970), You Angel You (Planet Waves) e Precious Angel (Slow Train Coming), para referenciar apenas títulos.
Christopher Ricks, em Dylan’s Visions Of Sin (2003), bem anota que “No empório do Empíreo, há muitas ordens de anjos, como arcanjos, querubins, serafins, tronos, domínios, virtudes, principados, potestades… Nas esferas de Dylan, também, há variedades angélicas. A que é saudada como ‘precious angel’ é humana mas celestial, mediadora entre o cantor e o Mediador. Aquela em ‘You Angel You’ é humana e terrestre.” Significa dizer que, nos cinco anos que passam da segunda à primeira canção, a acepção de mensageiro divino deslocou-se, conforme Bob Dylan deslocava sua fé, à maior valoração teológica. Nos dois casos, os anjos são mulheres, mas responsáveis por distintas metáforas. Há mais espessura de significados na de Slow Train Coming, pois reveste-se justamente de carga religiosa: o anjo mostra quão frágeis são as bases do cancionista, levando-o a enxergar a existência de uma “guerra espiritual” que o faz perceber que “Ou você tem fé ou tem descrença – não há campo neutro” – Precious angel, shine your light on me, ele clama. Consoante a lição de Ricks, repercutem na letra diversas alusões ao Apocalipse e aos Salmos.
Contudo, Three Angels, de New Morning, é deveras mais críptica. A letra é declamada por Bob Dylan e dá conta de três anjos, parados em uma rua movimentada, “desde a manhã de Natal”. Cada um toca uma trombeta, veste manto verde e tem asas. A paisagem cotidiana é descrita, com alguma dose de absurdo, apesar da presença dos anjos: “O gato selvagem de Montana passa como um raio/ Então uma moça num vestido laranja brilhante/ A carreta de mudanças, um caminhão sem rodas/ O ônibus da 10th Avenue indo para oeste/ Os cães e pombos voam alto e se esvoaçam por aí/ Um homem com um distintivo passa/ Três caras rastejam de volta para o trabalho/ Ninguém se pergunta por quê”.
Os anjos começam e terminam o poema tocando suas trombetas sem qualquer ouvinte, embora o motorista do caminhão da padaria tenha estacionado próximo à cerquinha acima da qual eles encontram-se: “O motorista espreita por aí, tentando encontrar uma face/ Nesse mundo concreto cheio de almas”, ao passo que “Os anjos tocam suas trombetas o dia todo/ A terra inteira progredindo passa por eles/ Mas alguém escuta a música que eles tocam/ Alguém sequer tenta?”
Três anjos, e é possível que sejam os mesmos da canção de Bob Dylan, aparecem em Apocalipse 14:6-10, “para proclamar aos que habitam sobre a terra, e a toda a nação, e tribo, e língua, e povo, dizendo com grande voz: Temei a Deus, e dai-lhe glória; porque é vinda a hora do seu juízo”. Esses seres celestiais entoam, pois, o canto quase ininteligível que anuncia, dos céus, a chegada do Juízo Final. Não parece saudável ignorar-lhes a mensagem, mas é exatamente o que acontece em Three Angels, e “Ninguém se pergunta por quê”. É necessário estar muito ocupado ou alienado para ignorar as trombetas apocalípticas – de outro modo, a mensagem desses arautos é obsoleta e desimportante. Dois grandes poetas auxiliarão o melhor estudo dos versos do cancionista, com a consideração da imagética e da semântica consagradas por suas visões angélicas.
A contraparte dos anjos que não são ouvidos parece estar contida nos anjos que não escutam, como os que habitam as Elegias de Duíno (1923), de Rainer Maria Rilke (1875-1926). Os versos que abrem-nas, alguns dos mais famosos da poesia universal, dizem “Quem, se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos/ me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia/ sua existência demasiado forte.” São necessários estudos auxiliares para compreender a importância dos mensageiros celestiais no inventário semiótico rilkeano, a significar forma de transcendência. Maria José Rainho Craveiro informa, em Os Anjos Não Deixam Pegadas: A Figura Do Anjo em Rainer Maria Rilke e Nelly Sachs (1999), que “O Anjo rilkeano não é um anjo sorridente. ‘Se eu gritar’, assim começa o poema, ‘quem poderá ouvir-me?’ E a resposta surge implícita: ‘Ninguém’.”
Todo Anjo é terrível segundo a concepção rilkeana, pois o poeta praguense coloca-os, nada obstante, no centro de uma relação que possibilita o engrandecimento do ser humano em contraste catártico com a divina perfeição. Rainho Craveiro: “Tal como com Jacob, gloriosos e ameaçadores, eles desafiam o ser humano para um combate mortal, do qual quase saem vitoriosos, enquanto o homem, longe de derrotado, surge mais engrandecido. O Anjo rilkeano é o protagonista de um drama que gradualmente se desloca do plano humano para o sobre-humano.” É deslocamento semelhante, então, ao que ocorre com o próprio sentido de anjo entre You Angel You e Precious Angel, possibilitador de imersão na guerra espiritual, que em nível metafórico afeta a todos.
Dora Ferreira da Silva, nos comentários de sua tradução (1972), afirma, em outras palavras, que, nas Elegias, “se manifesta a tensão ameaçadora que marca a relação entre o homem e o Anjo, símbolo do que ultrapassa e transcende a esfera do visível. Não há, porém, repouso possível para o homem, ser fronteiriço que as formas terrestres não saciam e que, por outro lado, o amplexo do Anjo ameaça destruir em ‘sua existência demasiado forte’.” Tal complexidade não se assemelha, contudo, aos três anjos da canção de Bob Dylan, em que pesem as paridades marginais e o efeito geral das considerações.
A poesia de William Blake (1757-1827) pode ajudar a compreender não a essência etérea, que varia de acordo com a intenção do autor que o cria, mas o comportamento humano – o motivo pelo qual as pessoas, em Three Angels, ignoram os mensageiros de Deus. Blake – cuja obra, assim como a de Rainer Maria Rilke, é imberbe em espiritualidade toda pessoal e enigmática, embora expressa de modo muito distinto – também utilizou arquétipos celestiais em seus poemas. A semelhança com a canção de Bob Dylan é grande em I Heard An Angel Singing (The Rossetti ManuscriptI, c. 1793-1811), na qual o eu-lírico também escuta um anjo cantar “o dia todo”. Mas o Anjo, postado sobre o feno macio, apresenta um discurso definido: “‘Misericórdia, Piedade, Paz/ É a libertação do mundo.’” Ao anoitecer, contudo, um Demônio posta-se sobre o tojo pontiagudo, e pragueja “‘Misericórdia não existiria mais/ Se não houvesse nenhum pobre,/ E Piedade não mais existiria,/ Se todos fossem felizes como nós.’”
O Demônio insinua falsidade no discurso celestial, com a persuasão particular aos diabos. O ouvinte das duas versões pode decidir, em última instância, em quem acreditar, assim que opte pela forma de interpretar o texto blakeano. Não é tarefa simples, mas “Ou você tem fé ou tem descrença – não há campo neutro”, dicotomia que Bob Dylan torna ainda mais específica em Gotta Serve Somebody (Slow Train Coming): “Bem, pode ser o demônio ou pode ser o Senhor,/ Mas você vai ter de servir a alguém”.
I Asked a Thief (The Rossetti Manuscript) apresenta outro anjo. O eu-lírico pede a um gatuno que lhe roube um pêssego, mas não é atendido. Da mesma forma, pede a uma senhora graciosa que se deite com ele, mas é ignorado. “Assim que fui embora/ Um Anjo veio:/ Ele piscou para o ladrão/ E sorriu para a dama;// E sem dizer palavra/ Conseguiu um pêssego da árvore,/ E entre sério e jocoso/ Aproveitou a mulher.” O ser angélico, porque faz uso de uma abordagem diferente, consegue o que ao poeta é recusado. O contraste blakeano é representado pela falha da verbalização humana e o sucesso da muda intuição dos anjos, que lhes outorga até mesmo a graciosa dona. Em Dirge (Planet Waves), canção de amor sombria e ressentida, Bob Dylan faz alusão à ida a um “lugar sombrio onde os mártires choram e os anjos brincam com o pecado”.
Mas “Eu canto as Canções da Experiência como William Blake”, Dylan diz em I Contain Multitudes (Rough & Rowdy Ways, 2020), a reverenciar Canções da Inocência e da Experiência (1789-1794). Pois bem, em Songs of Experience, habita o poema The Angel, que ilustra de outra forma o combate simbólico que existe na relação entre homem e anjo. É explicitado o momento em que ambos afastam-se e não escutam-se mais – trata-se da perda da inocência que permeia Songs of Innocence, a seção de poemas predecessora. Em The Angel, portanto, o poeta inglês sonha que é uma infanta princesa, que tem um anjo da guarda. “E eu chorava tanto noite e dia,/ E ele limpava minhas lágrimas;/ E eu chorava tanto dia e noite,/ E escondi dele o deleite de meu coração.” A pequena rainha confessa ter dissimulado o prazer que sentia ao contar com o apoio celestial, ao que o próprio anjo apercebe-se disso – batendo asas, ele voa para longe, representando a passagem da garota à maturidade. “Eu sequei minhas lágrimas, e armei meus medos/ Com dez mil escudos e lanças.// Em breve meu Anjo voltou;/ Eu estava armada, ele veio em vão;/ Porque a juventude havia voado,/ E cabelos grisalhos havia a minha cabeça.” Dez mil escudos e lanças foram precisos para a maturidade declarar a independência de sua hospedeira. E declarar, com isso, a obsolescência de um anjo da guarda.
É possível que aquelas pessoas que ignoram, apesar da premência, os três anjos apocalípticos na canção de New Morning sejam todas independentes – e conheçam os mensageiros divinos apenas por seu caráter obsoleto, como a menina amadurecida de William Blake. Também é plausível que o praguejar do Demônio haja surtido maior efeito na consciência coletiva, vez que tais anjos e suas trombetas não exercem o convencimento mudo daquele ser celestial de I Asked a Thief. E pode ser, ainda, que os indivíduos caminhem de fato alienados à batalha metafórica que o Anjo de Rainer Maria Rilke, arquétipo da perfeição, anuncia – capaz de operar verdadeira transcendência no ser humano. Muita coisa, afinal, é possível no “empório do Empíreo”, principalmente maneiras diversas de receber e comunicar a mensagem que os arautos de Deus transportam.