O mesmo Renascimento que consagrou a alegoria da primavera pintada por Boticcelli como ideal de beleza – que em parte seguimos ainda hoje – deslumbrou-se pelo desequilíbrio angustiante dos desenhos ornamentais encontrados nas grotas soterradas da Antiguidade.
Hoje, utilizamos a palavra grotesco como adjetivo para coisas estranhas, deformadas, ridículas. Não é gratuito que, nesse contexto, lutamos contra a gordofobia, o racismo, a transfobia e contra todas as formas de opressão imagética produzida por uma indústria da beleza que estimula a eliminação de corpos ditos “grotescos” ou mesmo sua padronização.
Mas a origem da palavra, nos conta a história da arte, dizia respeito a desenhos compósitos, que misturavam folhagens, partes de corpos humanos e animais, aparentemente enredados em um continuum assimétrico. O efeito dessa mistura entre os artistas renascentistas, segundo Wolfgang Kaiser, era sentido de forma ambígua como algo lúdico e sinistro, real e fantasioso, alegre e perturbador, o que desafiava os padrões racionais de beleza da época.
Algumas autoras latino-americanas da contemporaneidade tem retomado esse sentido crítico que deriva da ambiguidade do grotesco. Narrativas como Morra, Amor!, de Ariana Harwicz (tradução de Francesca Angiolillo para a editora instante), e O Corpo em que Nasci, de Guadalupe Nettel (tradução de Ronaldo Bressane para a Rocco Digital), são belíssimos e incômodos exemplos disso.
A autoficção da mexicana Guadalupe Nettel traz uma narradora em primeira pessoa cujo olho doente desde o nascimento a submete a uma série de exercícios extenuantes para uma criança. A mãe acha que está fazendo o bem para a filha, como todas as mães dizem. O sentimento de deformidade encurva seu corpo e isso lhe traz outro problema: a exigência de uma postura ereta que será corrigida com alongamentos dolorosos. Mas nada disso é suficiente, pois a menina é tratada literalmente como uma barata – num intertexto ressignificador da novela kafkiana. Chamadas como “Barata! Arruma essas costas!” e “Baratinha, é hora de colocar a atropina” (Nettel, 2013, p. 18) fazem parte do relacionamento com a mãe.
O romance Morra, Amor!, da argentina Ariana, em especial, utiliza a fusão do corpo humano da personagem principal com outros elementos da natureza, configurando esteticamente um corpo grotesco, para criticar o papel da maternidade na vida da mulher. Em uma passagem, lemos assim:
As outras [mães] um segundo depois de parirem dizem, já não imagino minha vida sem ele, é como se ele estivesse sempre estado comigo, pfff. Já vou, amor! Quero gritar, mas me afundo mais ainda na terra sulcada. Quero grunhir, berrar e, em vez disso, deixo que os mosquitos me piquem, que se deleitem com minha pele açucarada. O sol me devolve o reflexo prateado da faca na mão e me cega. O céu está vermelho, roxo, treme. Escuto me procurarem, o bebê cagado e o marido pelado. (Harwicz, 2019, p. 6)
Uma mulher-mosquito-terra surge diante de nossos olhos como as grotescas renascentistas. Uma mulher que grunhe, que incomoda, tanto por seu abraço grotesco quanto pelo que esse abraço significa: a recusa de uma verdade supostamente universal, o amor incondicional aos filhos. Em outra passagem, na verdade, em várias, há um animal que se destaca, por eleição simbólica, na composição dessa mulher de grotescas mutantes: o cervo. Surge uma ligação instigante entre eles: “A certa altura aparece um cervo que fica me olhando de forma selvagem, como ninguém nunca me olhou. Gostaria de abraçá-lo, se fosse possível’’ (Harwicz, 2019, p. 15).
O que ela gostaria de abraçar é a liberdade. A galhada do cervo nos lembra a mítica árvore da vida, sua potência de renovação e de fecundidade. Ao mesmo tempo, o cervo é um animal frequentemente apresentado sozinho, do mesmo modo como a personagem se sente solitária em sua angústia. Fica insinuada a imagem do enlace, da fusão de dois corpos ímpares, díspares, incongruentes. Quando leio essa passagem, fecho os olhos e vejo imediatamente o autorretrato de Frida Khalo, pintado em 1946, com o título de O Veado Ferido.
Ora, mas essa grotesca moderna possui um corpo ferido, alguém dirá. Onde, sua liberdade? Frida pinta seu rosto, coroado de galhos, fundido ao torso do animal ferido por flechas. O corpo dessa mulher-bicho está cercado, preso?, por árvores que podem impedir a fuga. No entanto, o corpo é livre justamente porque grotesco e, talvez, ferido de morte porque livre e grotesco. Ser livre dói por si só, mas também incomoda e atrai a ira de hipócritas genocidas.
O recurso ao grotesco crítico e irônico na construção de uma personagem mulher que tenta escapar das flechas morais da perversidade do capital e do patriarcado nos lança diretamente ao centro da floresta escura em que nos encontramos. Precisamos escapar daquilo que nos ensinaram a amar. Sim, o amor é construído. Gosto sempre de lembrar da lenda bretã que fundou a noção burguesa de amor no Ocidente: Tristão e Isolda. Tristão era o melhor e mais fiel cavalheiro do rei Mark, por isso foi incumbido de buscar a noiva prometida. A mãe de Isolda sabia que não existe casamento de aliança que dê certo, por isso entregou à filha um vinho mágico para que ela bebesse diante do futuro e real esposo. Mas ela toma o vinho antes, junto a Tristão. E se apaixona por ele. Daí a noção (leia-se: ilusão) burguesa de que escolhemos o amor de nossa vida.
Claro que deu tudo errado – assim como, na maior parte das vezes, amamos de modo equivocado, porque o amor não depende apenas da relação entre duas pessoas, mas dos papéis atribuídos às duas pessoas em uma relação. Isso serve para o amor maternal também. Quem disse que esse amor nasce pronto? Só se for pronto como a Fonte de Duchamp, uma ironia à própria ideia de essência da obra de arte. Analogamente, uma ironia à própria ideia de amor. Por isso, a personagem grotesca de Morra, Amor! diz:
O que me salva nesta noite e no resto não é de jeito nenhum o amor de meu homem ou o do meu filho. O que me salva é o olho dourado do cervo, ainda me olhando. (Harwicz, 2019, p. 63).
O cervo-dourado, o cervo-ferido – figuras da matéria de corpos marcados por cicatrizes da luta contra o grotesco que adjetiva, que fere, flecha, fecha; figuras da matéria de corpos feridos porque saíram em defesa do grotesco substantivo, desejante de liberdade, insistente em não esquecer que a diversidade é contraditória.
Ah, o amor. Não é por acaso que em português rima com dor.
Detive-me nas imagens de cervos e fiquei pensando como J. K. trabalha com essa figura/tema em Harry Potter. Não sei se viajei demais…
Gostei muito da reflexão.
Abraços,
Simplesmente amei!!!
Que lindo! Amei a página! Vou procurar seus textos