Em um ensaio que escreveu sobre o escritor Fiódor M. Dostoiévski (1821-1881) – morto há 140 anos, no dia 9 de fevereiro de 1881, aos 59 anos, e cujo bicentenário de nascimento será comemorado em 11 de novembro deste 2021 –, Otto Maria Carpeaux observa que o romancista nunca descreve o exterior dos seus personagens, dos quais, no entanto, o leitor conhece “os mais íntimos movimentos da alma”. De fato, o que torna a obra de Dostoiévski tão impactante é a forma admirável como ele percorre os labirintos da psique humana. Leitor apaixonado do autor russo, que teve grande influência sobre o seu próprio pensamento, Niezstche costumava chamar Dostoiévski de um grande “psicólogo”. “Além de Stendhal, ninguém produziu em mim tanto regozijo e surpresa”, confidenciou a um amigo. “O domínio de Dostoiévski é a alma e não a natureza, o seu universo é humanidade”, afirmou, por sua vez, o escritor Stephan Zweig.
Os personagens que desfilam pelas histórias de Dostoiévski nos desafiam por sua ambiguidade, o seu caráter tortuoso, oscilando entre paixões conflitantes, numa representação do que há de mais sombrio, mas, por vezes surpreendentemente, do que há de mais sublime nos seres humanos. Sim, Raskolnikof, o protagonista de Crime e Castigo, planeja e comete um assassinato da maneira mais torpe, mas também revela-se um jovem amoroso e dedicado à sua família. Dimitri, de Irmãos Karamazov, é explosivo, violento, irrascível, porém é capaz de realizar ações de uma inesperada generosidade. Mesmo o príncipe Michkin, de O Idiota, a encarnação do “homem bom”, um mescla de Cristo e Dom Quixote, mostra-se uma personalidade dúbia com sua fixação, que chega a ser doentia, em colocar em prática uma compaixão sem limites.
Esse exímio psicólogo, como dizia Niezstche, também era um mestre na arte de escrever diálogos. Na introdução que escreveu para as obras completas do autor lançadas no Brasil pela José Aguilar, Natália Nunes compara Dostoiévski a Sócrates nesse quesito. É como se o autor russo tivesse transposto para a sua literatura a maiêutica – a técnica socrática que consistia em buscar o conhecimento verdadeiro por meio do diálogo. “Numa conversa, toda a comoção secreta da alma vem à superfície, e nós não somente sabemos o que cada personagem diz e quer dizer, mas o que dissimula”, afirma o crítico francês Henri Troyat a respeito da obra de Dostoiévski.
Além desse cunho psicológico, a literatura do autor também é marcada por um teor expressamente político. Nos escritos da juventude, percebe-se uma forte influência das ideias socialistas, ao passo que, nos romances da maturidade, Dostoiévski desfere ataques impiedosos à esquerda e aos valores ocidentais, os quais, na sua opinião, ameaçavam a integridade da “alma russa”. O mesmo Dostoiévski que fora preso e quase executado pela polícia do czar e depois se submetera a dez anos de exílio na Sibéria pelos seus atos considerados subversivos, uma vez liberto, torna-se um porta-voz da ordem tradicional. Chega mesmo a defender, em alguns momentos, o despostismo czarista que controlou a Rússia até a Revolução de 1917.
Dostoiévski encarava com desconfiança a louvação ao progresso e à infabilidade da razão humana que contagiava a Europa – apoiada na crença de que os poderes da ciência colocavam o Homem como senhor do seu destino e da natureza. Para ele, uma inteligência desprovida de moral era sempre potencialmente perigosa. Como é o caso do já citado estudante Raskolnikof, de Crime e Castigo, que, por meio de um método estritamente lógico, chega à conclusão de que existem homens superiores que têm, para o bem da sociedade, direito de vida e morte sobre aqueles consideradores inferiores. Por consequência, com a finalidade de tirar a mãe e a irmã da condição de miséria em que vivem, ele – que se julga um homem superior – passa a encarar como legítimo o ato de matar uma velha usurária para roubar seu dinheiro.
Da mesma forma, em Os Demônios, o personagem Vierkhonvienski não hesita em mentir, trair e matar para derrubar o regime czarista e instalar o socialismo na Rússia – os fins justificam os meios. Não há como negar o reacionarismo explícito de Dostoiévski ao percorrer as páginas deste que é o romance mais político do autor, tendo em vista que as ideias socialistas que ele tanto condenava representavam uma justa aspiração por mais igualdade e liberdade num país que ainda vivia sob um regime praticamente feudal. Entretanto, é espantoso como Dostoiévski demonstra uma visão profética do que seria a URSS stalinista.
Tudo é permitido
Diferente do Raskolnikof de Crime e Castigo, Ivan, o intelectual de Irmãos Karamazov – uma espécie de alter-ego de Dostoiévski, exprimindo muitas das angústias e inquietações do autor – não divide a humanidade entre indivíduos superiores e inferiores. Ele simplesmente proclama a supremacia humana, indistintamente, diante de um mundo sem Deus. Ivan recusa a divindade porque não concebe como ela pode permitir a existência do mal. Mas, por outro lado, também admite que, sem Deus, não há moralidade – “se Deus não existe, tudo é permitido”. Como afirma Albert Camus em O Homem Revoltado, da sua revolta contra Deus, o personagem retira as consequências mais extremas. Ele se rebela contra um Deus assassino, mas, dessa rebelião, paradoxalmente extrai uma lei do assassinato. Apesar do seu amor abstrato pela humanidade, do seu ardor em emancipar o homem, ele deduz que, se tudo é permitido, pode então matar o pai, um sujeito cruel e beberrão. E assim o faz, induzindo o irmão bastardo a assassinar o velho. A negação da onipotência divina também move o gesto extremo de Kirilov, de Os Demônios, que suicida-se para provar que o único dono de seu destino é ele próprio e não um deus tirano e opressor.
Para Dostoiévski, esse racionalismo que ele considera amoral só leva o ser humano ao precipício. Suas personagens niilistas, na maior parte das vezes, sucumbem vítimas de suas próprias ideias – somente aqueles que expiam suas faltas e optam pelo caminho da fé, a exemplo de Raskolnikof, têm alguma chance de redenção. Imbuído de um cristianismo místico, Dostoiévski acredita na possibilidade da ascese. Mas essa via de libertação requer que antes se faça a travessia do calvário – daí a profusão de criminosos e marginalizados na obra do autor que acabam se convertendo à religião.
O verdadeiro representante desse cristianismo místico, conforme o romancista, seria o povo russo. Essa crença é mais uma demonstração da hostilidade de Dostoiévski com relação à cultura ocidental, a qual teria, na sua ótica, corrompido a verdadeira religião. Para Dostoiévski, a salvação do mundo só poderia ocorrer pelo cristianismo, uma missão que caberia exclusivamente à “mãe” Rússia levar a cabo.
Essa Rússia idealizada pelo autor, contudo, não é aquela representada em seus romances pelos intelectuais que falavam em francês nas festas elegantes de São Petesburgo (uma cidade que fora construída aos moldes das grandes metrópoles europeias pelo czar Pedro, o Grande, no seu esforço de ocidentalização do país) nem pelos grandes proprietários de terra. Ela está presente no camponês, no mujique, brutalizados em função da condição de serviçal, mas, na visão de Dostoiévski, portadores de altas qualidade morais que se revelavam nos grandes momentos.
Sob esse aspecto, o romancista poderia ser considerado um revolucionário, pois ele se colocava ao lado do povo e contra as elites. “Mas é contra nós”, alerta o crítico Otto Maria Carpeaux. Sem dúvida, ao opor a Rússia ao Ocidente, Dostoiévski renega as grandes conquistas da ciência, da artes, da luta de classes que marcaram a Europa. Todavia, o autor intuiu acertadamente quando disse que a Rússia seria uma espécie de troica a conduzir o resto da humanidade – não em uma cruzada santa, como ele previu, mas com a Revolução de Outubro de 1917, a qual impôs uma nova correlação de forças no cenário geopolítico mundial que, de uma forma ou de outra, ainda se mantém até hoje.