[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
Em A Filosofia como Ciência de Rigor (1911), Husserl aponta a pretensão radical da filosofia em tornar-se uma ciência rigorosa e os caminhos que ela deve tomar para a obtenção desse propósito. Além disso, o texto oferece também uma análise crítica ao naturalismo e ao historicismo, duas das principais características do pensamento contemporâneo. Gostaríamos de abordar aqui o problema do historicismo em Husserl e o seu projeto de uma filosofia científica.
Edmund Husserl (1859-1938) teve sua formação inicial em matemática e astronomia e, após seu doutoramento em matemática, decidiu se dedicar à filosofia, muito em razão da influência de Franz Brentano (1838-1917), seu professor, que já buscava por meio de seus trabalhos um caráter mais científico para a filosofia. Psicologia do Ponto de Vista Empírico, de 1874, é sua principal obra filosófica.
Dar à filosofia bases cientificamente rigorosas era o objetivo de Husserl. Para o filósofo, embora essa pretensão tenha estado desde sempre presente na história da filosofia, ela jamais se realizou. O pensamento filosófico sequer conseguiu elaborar de modo claro os seus problemas, isto é, a filosofia em seus mais de 2 mil anos não soube, segundo Husserl (1952), se constituir como ciência rigorosa em razão de sua desorientação metodológica.
Nem a Natureza (naturalismo) nem a História (historicismo) explicam tudo. Para Husserl, a realidade constitui-se de uma dimensão que está além da natureza e da história, é, pois, apenas este “além do natural e do histórico” que pode explicar a realidade em que vivemos. Mas o que exatamente está além da natureza e da história? Que realidade é esta que não é nem natural nem histórica? Em uma palavra, trata-se de uma realidade ideal, uma “idealidade”, tal qual “a coisa em si” kantiana, isto é, uma realidade transcendental, mas que, diferentemente de Kant, para Husserl, pode ser conhecida. Ou seja, justamente porque esta “idealidade” pode ser conhecida é que se pode esperar que a filosofia seja uma ciência rigorosa; só uma ciência rigorosa pode, afinal, conhecer esta “idealidade”.
Se a filosofia não conseguiu se estabelecer como ciência rigorosa, é porque faltou a ela dar objetividade aos seus fundamentos. Husserl (1952, p. 3) dirá:
Ora, a imperfeição da Filosofia é inteiramente diferente da de todas as ciências que acabamos de descrever. Não somente não dispõe de um sistema doutrinal completo e apenas imperfeito nos respectivos pormenores – não dispõe de sistema algum. Tudo aqui é discutível, todos os juízos dependem da convicção individual, da escola, da “posição”.
A inovação de Husserl está no fato de que ele pretende estabelecer a filosofia como ciência rigorosa, refundando-a metodologicamente, interrogando-a quanto aos seus fundamentos mais radicais.
Nas palavras de Husserl (1952, p. 53): “Os factos históricos da evolução, mesmo os mais gerais do modo da evolução de qualquer sistema, podem constituir razões e até boas razões. Mas as razões históricas não podem originar senão resultados históricos”. Daí, notamos como o historicismo traz em si o problema do relativismo/ceticismo, pois a verdade é, aí, sempre factual.
Diante disso, temos como consequência do historicismo: a anarquia dos sistemas filosóficos, a contradição e a incongruência das opiniões humanas e, por último, a relatividade da forma histórica da vida.
Entretanto, Husserl demonstra que a crítica ao historicismo não significa recusa à história. A história é importante porque fornece-nos a cultura, a política, a moral, enfim, uma pluralidade de ideologias – termo que aqui tem o sentido estrito de “visões de mundo” –, que são os elementos responsáveis por todo o sentido que damos à nossa existência histórica.
Um dos problemas centrais do historicismo é o subjetivismo epistemológico extremo que ele gera, segundo o qual, tudo é interpretação do sujeito, tudo é relativo ao sujeito. Ora, o que há aqui é a absolutização dos fatos da vida; daí a crítica de Husserl (1952) de que a ciência, diferentemente da ideologia, não se limita ao espírito de época. As filosofias históricas são ideológicas, finitas, e devem renunciar à pretensão de serem ciências rigorosas, pois só a filosofia não ideológica, não historicista, reúne as condições necessárias para se tornar verdadeiramente científica.
Com efeito, a história nos coloca diante de verdades de fato (inferiores) em face de verdades de princípio (superiores), verdades da filosofia científica. A questão da absolutização do fato gera a impossibilidade de conhecer objetivamente, pois isso só é possível por meio de ideias, de princípios. A pretensão de “[…] fundamentar ou refutar ideias com factos, é um contra-senso” (Husserl, 1952, p. 53), portanto, sim, contra fatos, há argumentos!
Dessa maneira, o pensamento deve ser concebido de modo hierárquico. Há, de um lado, o conhecimento objetivo, de outro, o conhecimento subjetivo/cultural do mundo. Ex pumice aquam, não devemos desejar “tirar água de pedra” (Husserl, 1952, p. 53).
Destacamos três críticas principais de Husserl ao historicismo: 1) preconiza que não há valores absolutos, porém, absolutiza os fatos; 2) argumenta que uma filosofia como ciência rigorosa é uma quimera, porque ela jamais existiu, mas isso, dirá o filósofo (1952, p. 54), é um contrassenso (igual 2 x 2 = 5), pois, do fato de ainda ter existido uma filosofia como ciência rigorosa, não se pode concluir que ela não possa existir, há um futuro ilimitado em aberto para torná-la possível; 3) visa reconstruir o espírito de determinada época, a fim de apreciar o seu valor relativo, todavia, ilude-se com pretensões idealizantes.
Portanto, o historicismo, como filosofia ideológica, deve renunciar a sua pretensão de ser ciência, deixando à filosofia científica se tornar factível e realizar o seu projeto de constituir-se como ciência radical, dos fundamentos (de ir às coisas mesmas). Não podemos abrir mão da eternidade por amor ao tempo presente e transferir o mal-estar que dele provém num problema indissolúvel para as gerações. Devemos então evitar o historicismo, ele é mais um sistema filosófico que se tornará um artefato no “museu da história” (Husserl, 1952, p. 4).
Referências
HUSSERL, Edmund. A filosofia como ciência de rigor. Tradução de Albin Beau. Coimbra: Atlântida, 1952.
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto é o 12º da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.
- Diálogos Atemporais, de Augusto Henrique Gamarra de Souza, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/20/dialogos-atemporais/.
- A Pluralidade Histórica e os Sistemas de Valor, de Marielly Romeu Marcelino, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/27/a-pluralidade-historica-e-os-sistemas-de-valor/.