paul valéry escreveu num de seus cahiers: “o poema, essa oscilação prolongada entre o som e o sentido”.
“sim, é”: o encontro do corpo com o osso e com a chuva da palavra: a língua, em fátima, é algo impossível que se deixa fisgar por uma contingência. uma língua desnudada até o assombro, mais longe que o corpo, no fundo do ar. “sim, é” tem uma relação tempestuosa com o sentido: dilacera a interioridade: é contra o assepticamente controlado.
a lâmina d’água da escritura de fátima pinheiro não encontra o bem nem o belo, mas a alegria, a satisfação através do uso da palavra: o que é uma palavra neste “sim, é” de fátima? uma linha de zeros ao longo do mar, um nada? a palavra, sabe-se, é nada, no entanto, um nada que dá. dá o quê? a afirmação de uma presença, que, sim, é.
neste “sim, é”, os corpos minúsculos e negros das palavras na solidão da ponta da língua de fátima nos indica que, quanto mais rápido é o jorro de sua escrita, mais clara ela é, porque fátima sabe que é no hesitar na escolha das palavras que se precipita o pensamento. por isso, ela pratica o koan, esse enigma quase insolúvel, que apresenta a solidão de um significante à solidão de outro significante, à procura da quebra do sentido. o koan é uma contradição, um ir contra os padrões congelados, enfim, contra a mesmice. nos koans (que ela reinventou e agora podem ser chamados de semikoans), a língua de fátima suprime a opacidade, infiltra na pedra gasta da gramática a jam session (o improviso) de um sopro novo. sobre o koan, fátima escreve: “o koan é o corte, a interrupção da cadeia polissêmica, é a via que se dirige para o confronto direto com o gozo e a pulsão. contudo, o koan não se dirige para a absurdez, e sim para a isenção de sentido”.
“sim, é”, desde o título deste livro, já confirma a que veio: diz sim às coisas, desde a raiz de sua sonoridade, e vence o acaso, palavra por palavra, e, se as palavras exaltam-se por si mesmas, é porque fátima deixa a linguagem dizer o cascalho. em “sim, é”, a satisfação é escutar, no nada das palavras, sua pulsação. fátima faz ressoar – bálsamo, capinzal, realejo, papoula, varanda, fúcsia, zínia, pinguim, herbário, areal, labareda, tucum, malaquita – e transmuta esse ato de fazer ressoar numa invenção singular.
“sim, é” instiga a fratura do preestabelecido, o que, de certa forma, confirma a ideia de que a poesia é um contínuo deslocamento até à ruína da linguagem. cada poema e cada conto deste livro fazem parte de um sistema hidráulico que se guarda como enigma. cada poema diz e desdiz, desfaz com a palavra o que foi feito pela palavra. no areento (embora haja também nuvem, erva, e fogo) de “sim, é”, a palavra é mais difícil de ser colocada abaixo do que uma palmeira ouricuri – que mesmo cortada e caída no pedrento enraíza – guarda sua água na grota funda.
daí que se pode dizer que as palavras deste “sim, é” nascem do saravá voltaico, ali onde toda respiração, na raiz, é fogo e infinita alegria. as palavras jorram do silêncio que antecede o vento nas ervas. eu poderia, também, dizer que as palavras de “sim, é” são incriadas, não nascem nem morrem, antes pairam suspensas no savoir-faire de um abismo vibratório. as palavras de “sim, é”, em seu nascedouro primordial, são uma concha marinha que estremece as angras da noite.
a seguir, recolho algumas frases de fátima que podem ser lidas em “sim, é”:
1. improvise um cisne ao vento.
2. minhas mãos eram azuis ao meio-dia. me senti um peixe-voador.
3. este poema não quer ser escrito: a ordem é destruir regras óbvias.
4. xucra voz de lumaréu: zumzumzum, ulula, me bebe de chá.
5. lembre-se do intervalo: deixe sempre uma linha em branco no texto.
6. eu era funk, cadela raivosa, zéfiro acuado no canto, sou toda vendaval.
7. alguém serafim: acorda, acorda vida.
8. o que há no íntimo? grain de beauté na boca de quem fala.
mas o que há no “sim, é”, que o faz tão essencial nestes dias bárbaros em que a mesmice grassa por todos os lados? há, no “sim, é”, de fátima, contos, poemas, koans, tankas, haicais. e tem mais: neste “sim, é” – tão visível quanto as ostras e os leques – a linguagem encontra o vivo a cada instante, constelando algo que se mostra virgem, vivaz, tocado pelo falasser: como disse lacan: “só há abismo se o falasser o dizer”. fátima diz, com elegância e sobriedade, mas aprendeu que este dizer é um artifício.
toda palavra é morta: a poesia é o reino do desastre. toda palavra está recostada num túmulo, ávida de sopro, com sede de miragem, de aragem. a palavra é arpão engatilhado, búzio, bonsai. as palavras só conhecem a sede.
yeats escreveu que o poeta é um camaleão: fátima é uma camaleoa quando permite à coisa ser o que ela é diante de suas palavras.
nas águas deste “sim, é”, fátima não nega a metáfora nem a metonímia, nem insiste sobre elas, porque o que ela mais deseja é a absoluta liberdade da palavra: a palavra não é a coisa (“das ding”), mas um clarão que permite que percebamos a coisa (“das ding”). as metáforas e metonímias de “sim, é” sempre rebeldes a toda posse direta, mas dóceis ao encantamento da linguagem. em “sim, é” não é a metáfora nem a metonímia que ressoam, mas a vida, que já traz em si sua essência completamente impenetrável. para concluir, é possível ressaltar que, em “sim, é”, para além da presença das metáforas e metonímias, há também o aspecto koânico, que, ao anular o sentido, faz ressoar as palavras em sua materialidade, o que remete a questão à pura articulação sonora que atravessa o corpo.
a constelação de palavras de “sim, é” se prende ao fio de um “talvez” no céu noturno.
Livro: sim, é
Autora: Fátima Pinheiro
Editora: Blanche (PR)
Contato: editorablanche.com.br/
Confira uma seleção de poemas de Fátima Pinheiro, extraídos do livro sim, é, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/07/cinco-poemas-de-fatima-pinheiro/.