É provável que você conhece ou já tenha ouvido falar de Thanos, um dos arqui-inimigos dos heróis da Marvel Comics. Essa estranha personagem foi criada nos anos de 1970 pelo artista Jim Starlin, alcançando repercussão nos quadrinhos devido à rivalidade com os ilustres Homem de Ferro, Capitão América, Thor, Hulk, Viúva Negra e companhia. Mas qual seria o cerne da desavença entre eles e o temido titã? Em geral, a causa disso parece estar na querela das “joias do infinito”, pois Thanos, empenhado em exterminar a metade da população deste e de outros planetas, conteria assim o problema da escassez de comida e demais infortúnios causados pelo inchaço populacional. Tendo as seis pedras devidamente acopladas na sua luva metálica, produzida especialmente para abrigá-las, bastaria para tanto a praticidade do leve estalar de dedos, poupando, desse modo, bilhões de seres humanos da morte lenta e sofrida, conforme visto em uma das últimas cenas de Guerra Infinita, penúltimo filme da saga dos Vingadores.
Com a pretensão de desafiar a coerência da história em quadrinhos, quero agora apresentar outro novo ponto de vista acerca da funcionalidade das personagens da Marvel, ou melhor, gostaria de convencê-los da hipótese de, caso algum dia fosse-nos permitido trazer à realidade somente uma delas, provavelmente deixaria os Vingadores de lado, haja vista a atual urgência da imparcialidade de Thanos. Inclinação ao genocídio? Absolutamente, e posso dar explicações razoáveis para minha defesa.
Para começar, trago as contribuições filosóficas de Julio Cabrera. O filósofo latino nos alerta a respeito do problema metafísico de erroneamente imaginarmos a vida humana de maneira afirmativa dentro da inalterável perspectiva de uma autorrealização, bastando-nos seguir o curso da honestidade e da verdade. Em desacordo à via de regra, Cabrera complementa que a dor e a desordem são a nossa invariável condição, a de seres racionais. Nesse aspecto, devemos admitir a fragilidade da existência e aprendermos a acolhê-la seguros da sua mais absoluta miséria e desgarramento. Afinal, somos seres inacabados e imperfeitos, surpreendentemente lançados neste mundo e vivendo sob constantes ameaças, presos às circunstâncias do tempo sem podermos satisfazer plenamente nossos desejos em decorrência das incertezas do êxito e do progresso.
Por esse prisma, acredito que os combates repletos de golpes de artes marciais, explosões e demolições desmedidas perderiam espaço caso os substituíssemos pelo sereno ambiente diplomático. Ora, sejamos francos: considerando tantos problemas existenciais, seria tão inconveniente desaparecermos com a sorte do estalar de dedos de algum carrasco? Considero que, ao contrário da lógica edificante, a maior parte dos seres humanos de qualquer canto do planeta é marcada pelo sofrimento, a exemplo de doenças, traumas, injustiças sociais e desastres ambientais, não fazendo, portanto, o menor sentido encobri-los, mas sim aceitá-los como situações inerentes ao viver.
A “ética negativa” tece uma enérgica crítica ao sistema de valores éticos desenvolvido pela tradição filosófica europeia. Ao mostrar a via do “não ser” como parte incondicional da estrutura da condição humana, Cabrera brilhantemente inverte as questões relacionadas à vida, especialmente sobre os temas da morte e da procriação. Talvez, nessas circunstâncias, Thanos passe a fazer mais sentido, assumindo o papel do arauto de alívio e de esperança. Vejamos as razões!
Primeiramente, se parássemos de encobrir as situações sombrias do dia a dia, conseguiríamos, segundo o filósofo, enxergar a morte dos outros como “continuação natural dos seus estados anteriores” (A ética e suas negações. Rio de Janeiro: Rocco, 2011, p. 93). A intenção consiste em mudar a consciência que obtivemos da morte, de modo a promovê-la dentro de uma diferente configuração com os vivos. Formas de relacionamentos desde então incapazes de realizar mudanças fundamentais e quem sabe, dessa maneira, aprenderíamos a viver de forma deflacionante em virtude da leveza conquistada através das várias interações mundanas. Em contraposição a toda essa radicalidade, poderíamos pensar nas coisas boas, mas num esforço de sensibilidade e de empatia facilmente descobriríamos que a expressão “qualidade de vida” é raramente empregada para grande parte da população da Terra.
Na última edição do relatório O Estado da Insegurança Alimentar e Nutricional do Mundo, houve o registro de quase 1 bilhão de pessoas famintas no planeta – dados que após a pandemia provavelmente crescerão exponencialmente. Ademais, segundo os dados da ONU, mais de 2 bilhões de pessoas carecem de água potável, 4, 2 bilhões estão sem saneamento básico e, em mais de 30 regiões dos cinco continentes, milhões de pessoas morrem por conta de conflitos armados, sem contar a crescente de mortes pela covid-19. Obviamente seria absurdo defender o extermínio de qualquer ser humano abaixo da linha da pobreza, pensando tratar-se da solução adequada contra as mazelas sociais. Diferentemente disso, meu interesse é de somente compartilhar a pergunta acerca das razões para inflacionarmos nosso estilo de vida a ponto de defendermos a procriação. Recordo de Nietzsche ao tratar de Sileno em O Nascimento da Tragédia. Parafraseando o antigo sábio, o pensador alemão declara que, diante das circunstâncias do existir, melhor mesmo seria nunca termos nascido, mas se isso já aconteceu, então que morramos depressa.
Além de Nietzsche e Cabrera, vemos Schopenhauer e Camus lançarem fortes suspeitas sobre a visão romântica da vida. Reitero o propósito de jamais desprezá-la, porém de conter seu exagerado apego a este mundo, alimentado pelas contradições de um sistema opressor que defende a meritocracia sob a falsa garantia da liberdade e da oportunidade, independente da raça, do credo ou da condição econômica. Mundo onde ilusoriamente é defendida a sensatez entre a realidade dos fatos e as fotos felizes do Instagram, das promessas do amor eterno ou da procriação perfeita, estampada nos anúncios das fraldas descartáveis. De costume, viver é sofrer, caros leitores! Acolher toda nossa carência e superficialidade também é permitir paradoxalmente a alternativa de vivermos de forma mais honesta, aprendendo a distinguir qualidade da longevidade. Quem sabe, dessa maneira, muitas pessoas tenham todo direito de encarar a vinda de Thanos e das suas joias mágicas como alívio esperado ao invés da fatalidade de proporções apocalípticas.