Até hoje eu me lembro nitidamente do primeiro cadáver que vi de perto, na minha infância. Era o do seu Antônio, um vizinho nosso. Tinha por volta de 60 anos e morrera em decorrência de um infarto. Em meados da década de 1970, pelo menos nos bairros mais populares, ainda era costume os velórios ocorrerem nas próprias casas dos finados, um acontecimento que mobilizava toda a vizinhança. A plaquinha da funerária na porta da residência era um apelo lúgubre que atraía homens, mulheres e crianças, entre conhecidos que vinham prestar sua solidariedade à família e curiosos que queriam apenas dar uma espiada no corpo estendido no caixão. Espremendo-se na acanhada sala de estar em que o falecido era velado, no ambiente sufocado pelo calor das velas acesas e pelo odor nauseabundo das flores murchas, ou amontoando-se na cozinha apertada e no quintal de terra batida, os visitantes tentavam inicialmente manter o semblante compungido. Mas logo se descontraíam nas rodinhas de conversa e, não raro, um coro de gargalhadas rebentava quando um gaiato soltava uma anedota – numa atmosfera de camaradagem que atenuava a aspereza da rotina de trabalho duro e privações, comum a quase todos ali reunidos.
No entanto, entre a lamentação dos parentes e amigos do morto e a frivolidade dos bisbilhoteiros, o que se sobressaía naquele momento era a convicção geral de que a morte de uma pessoa próxima marcava uma pausa no curso automático da vida coletiva e sua urgência para atender às necessidades da sobrevivência. Se não inevitavelmente levava a reflexões mais profundas sobre a nossa finitude, o ritual dos longos velórios que se estendiam noite adentro e do cortejo do sepultamento exigia ao menos que se parasse por um momento para prestar as devidas homenagens à memória do falecido e compartilhar do luto de sua família. Entre nós, crianças, essa experiência da morte levava os mais impressionáveis a passar alguns dias dormindo de cabeça coberta, com receio de acordar no meio da noite e deparar-se com o fantasma do defunto recém-enterrado ao lado da cama.
Diante dessa hecatombe que presenciamos dia a dia, com os anúncios rotineiros de milhares de mortos pela covid-19, volta e meio me lembro desses velórios de bairro que presenciei, com curiosidade e temor, quando era menina. Será que se pudéssemos ver, como outrora faziam as plaquinhas das funerárias nas portas das casas, algum sinal exterior indicando luto pelas vítimas da pandemia na fachada das residências ou nas janelas dos apartamentos, esses avisos fúnebres poderiam ter algum impacto sobre essa apatia que nos imobiliza diante das estatísticas da TV? Será que se disseminaria um pouco mais entre as pessoas um sentimento de compaixão e de dor compartilhada – e, quiçá, de indignação e revolta – se essas mortes se tornassem um pouco mais palpáveis e ganhassem mais visibilidade no cotidiano tão robotizado da cidade? Muitas hipóteses podem ser formuladas… Mas tenho de admitir que essas divagações podem soar demasiado ingênuas diante deste nosso tempo tão brutal, marcado por um individualismo feroz e indiferente ao sofrimento alheio e agravado por esse clima de alienação geral, com tanta gente vivendo uma realidade paralela em suas bolhas nas redes sociais ou ainda hipnotizada por sua própria imagem – num ritual de autoidolatria em que a tela dos smartphones se converte em um espécie de oratório para cultuar o único deus que realmente é venerado: o Ego soberano.
É verdade que a banalização da morte não é um fenômeno recente entre nós, principalmente no que se refere à população preta e pobre, vítima de uma política deliberada de extermínio praticado pelos aparelhos repressores do Estado, com o silêncio (e não raro o aplauso) cúmplice da sociedade, salvo as poucas e corajosas vozes que denunciam essa barbárie cotidiana. Mas, com essa proporção inaudita de óbitos diários, é como se agora o país, recordista em assassinatos de jovens negros, tivesse aprimorado a sua “expertise” e ampliado e diversificado a sua macabra produção, usando como matéria-prima todo o seu povo.
Em Origens do Totalitarismo, Hannah Arendt usa a expressão “fábricas de extermínio” para designar os campos de concentração do nazismo, os quais funcionavam dentro de uma lógica de organização industrial para “produzir” em grande escala o assassinato. Segundo Arendt, a fabricação em massa de cadáveres nos campos nazistas só pôde ocorrer porque foi precedida “pela preparação, histórica e politicamente inteligível, de cadáveres vivos”. “O incentivo e, o que é mais importante, o silencioso consentimento a tais condições sem precedentes resultam daqueles eventos que, num período de desintegração política, súbita e inesperadamente tornaram centenas de milhares de seres humanos apátridas, desterrados, proscritos e indesejados, enquanto o desemprego tornava milhões de outros economicamente supérfluos e socialmente onerosos”, escreve. Já nas páginas finais do livro, a autora alerta para o perigo de essas fábricas de cadáveres se tornarem novamente no futuro uma forte tentação “sempre que pareça impossível aliviar a miséria política, social ou econômica de um modo digno do homem”.
Não foi preciso, entre nós, a instalação maciça de campos de concentração para converter a nação em uma gigantesca fábrica de cadáveres. Bastou a disseminação de um vírus mortal facilitada e incentivada pela ação e pela omissão criminosas deste governo, abertamente genocida. Triste destino deste pobre país que já exportou aviões, se transformou nos últimos tempos em um grande “fazendão” para suprir as necessidades alimentares de outras nações, enquanto parcelas cada vez mais consideráveis de seu próprio povo passam fome, e agora se torna campeão mundial na produção de um tipo de “mercadoria” que ninguém deseja.
Ainda sobre o totalitarismo, Arendt afirma que a obsessão desse tipo de regime não é propriamente exercer um domínio despótico sobre as pessoas, mas instalar um sistema em que os indivíduos sejam considerados supérfluos. Se as vidas podem ser sacrificadas em nome da economia, se as mortes tornaram-se mera estatística que não comove mais ninguém, então já nos tornamos de fato cadáveres vivos, a matéria-prima de reserva a ser processada na grande indústria do morticínio na qual se transformou o Brasil.
Escrita com sensibilidade e excelência, nasce uma espécie de crônica admirável! Parabéns ainda pelo seu aniversário, com votos de saúde, alegria, amizade e sucesso nas labutas!!! Grande abraço, fraternal