[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
A manufatura do saber
Da sapiência, ou sabedoria, como definida por Aristóteles (2009, p. 8-12), se inferem cinco elementos: 1) o que é a própria sabedoria: definida como o conhecimento ou a pesquisa das causas primeiras; 2) o que ela não é: conhecimento oriundo dos sentidos; 3) a formação de um juízo único; 4) o que o grau de sabedoria gera: uma hierarquia das formas de saber, e 5) a admiração dos que produzem a arte – sabedoria –, que provém da experiência, ao passo que a inexperiência representa o acaso; estes são os sábios, aqueles que têm a arte da sabedoria e que são dotados de maior honra e mais conhecimento, já que os sentidos são demasiado fáceis e todos os homens os conhecem.
Mas por que só os sábios detêm a sabedoria? E por que há hierarquização das formas de saber? Os que não são considerados sábios, talvez de maneira transversal, seguindo passos diferentes, não chegariam a um conhecimento dos porquês igualmente válido, mesmo que subjetivo? Não seriam os sábios apenas detentores do poder para a produção do saber e do saber que produz poder?
Propomos outra “arte da sabedoria”, que não seja concebida apenas como tecnologia de deciframento de signos, que não conheça “todas as coisas” e, finalmente, que aqueles que a exercerem não sejam os “detentores do poder”, como pretende Aristóteles (2009, p. 11), ao propor que o sábio não deve ser comandado, mas comandar, e a ele deve obedecer quem é menos sábio. Ora, o “sábio” de Aristóteles se encontra em uma relação de poder com os que não produzem a sabedoria, tal qual nos é apresentada; entretanto, a renúncia ao poder é uma das condições para que se possa tornar-se sábio (Foucault, 1987, p. 32).
O “sábio” de Aristóteles, que assume posição de poder na relação com o “menos sábio”, se vê como o único capaz de produzir saber. Ele seria verdadeiramente sábio ou apenas alguém tomado pela vontade de produzir verdades? Ele toma posse da arte da sabedoria e impede que outros – os homens da experiência comum, os trabalhadores manuais – também a detenham, mas, se ele, o sábio aristotélico, produz sua própria concepção de saber, seriam válidos a obediência e o poder a ele atribuídos pelos outros?
Começo da manufatura da desordem
A noção de juízo único e a negatividade do acaso nos fazem questionar: especialmente o acaso, fonte da multiplicidade, não participaria do começo, da causa primeira? Não é da desordem, provocada pelo acaso, que se dá o mundo e as coisas? O começo da vida não é por acaso? Ora, a sopa primordial seria estéril sem a randomização que apenas o caos produz. Aristóteles parece negar a potência do acaso e da inexperiência. Se a pesquisa da sabedoria nega, logo de início, uma causa da existência tão possível – o acaso –, então, ela se incapacita para descobrir os porquês. Mas deveria ser a busca por eles a principal meta das investigações?
Quanto ao juízo, quando único, dá pouco espaço às imaginações. Por que procurar pelo único, quando ele pode ser múltiplo? Para ser uno não é preciso justamente ser múltiplo em si mesmo? É a multiplicidade que dá início ao singular, à diferença, ao específico. No entanto, o juízo único é uma repetição do mesmo, é padronizado, sem nada de singular. O um há de ser vários para ser singular e não procura o essencial, o primeiro, a causa, ele se encontra em sua infinidade e nos efeitos que dela advêm. Tudo se encontra na multiplicidade, mesmo o um, o uno, o único. Quando se dá espaço às variações, seja de saberes, seja de juízos e formas, cria-se uma centelha da diferença que possibilita a produção do novo.
Com efeito, Aristóteles prossegue em sua reflexão sobre a sabedoria e nos apresenta as diferentes propostas, de diversos filósofos que o antecederam, quanto à arqué, a realidade última e essencial de tudo o que existe. A água, o fogo, a terra, o grande e o pequeno, as formas, as ideias, os números, os contrários, cada um desses elementos, embora distintos, representa o mesmo objetivo: a busca por um porquê originário, uma causa radical da existência. Mas essa busca obsessiva por uma causa primeira não seria uma pesquisa vã? Podemos realmente chegar ao que primeiro foi?
As proposições de seus predecessores nos parecem dotadas de um essencialismo e um materialismo exacerbados. Os pitagóricos organizam seus princípios por meio de uma série de oposições dicotômicas, restringindo a possibilidade de uma unidade polar, como, por exemplo, um feminino masculino e vice-versa, prendendo uma essência única. Parmênides, ao propor que o ser é ou não é, restringe-o em sua qualidade material, no entanto, é na contradição do material que o ser pode ser livre para ser e não, ser e não ser mais.
Se algo causou o ser, acreditamos que este algo seja uma causa incausada, um princípio abstrato que se materializa por meio de certos dispositivos, sendo inicialmente imaginário, antes de ser posto em palavra. Se pudermos propor nossas próprias “quatro causas”, quatro elementos fundamentais, diríamos que eles se referem a algo que apenas presenciamos. Estes elementos não significam um porquê, são porque simplesmente são. Compartilhando da ideia de Heráclito, de que as coisas sensíveis estão em constante fluxo, e parcialmente do conceito de homeomerias (sementes), de Anaxágoras, segundo o qual o todo é composto por infinitas partes indivisíveis, temos o seguinte plano.
O movimento, o desejo, a desordem e o um. Quatro pontos que produzem retas e conformam um grande e interminável plano; formam e estão contidos nele. O um é o infinito, singular e múltiplo, semeia o plano com diversas partes, que não necessariamente se encaixam, porém, se entrecruzam e sobrepõem-se: são as sementes, tal qual Anaxágoras propõe. O desejo é desejo de ser mais, de brotar, de se espalhar pelo plano em um constante fluxo de movimento; produz, cria e recria numa desordem infinita, aumentando a infinidade de possibilidades desse sistema.
Uma semente, ao brotar, desaparece, sendo impossível achar o ponto inicial de onde as raízes e os rizomas saíram. O que vem depois do momento da criação é apenas a vontade de ordenar todo o caos produtor e produzido. Utilizamos de dispositivos como a arte da palavra e da imagem para formar o discurso de como tudo foi, é, e deve ser, dando sentido ao ininteligível, já que tudo em plena potência de ser e de se transformar, como no estado inicial, causa desconforto e incertezas. Propomos, portanto, que se cesse a procura das causas, a análise dos múltiplos efeitos que delas advêm talvez seja mais apreensível e fecunda para pensarmos nossa desordem fundamental.
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. 3. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2002. 352 p. (v. I).
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Tradução de Raquel Ramalhete. Petrópolis, Vozes, 1987. 288p
[1] Professor do Curso de Filosofia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O texto é o 14º da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos:
- Há Relação Entre Relativismo e Fascismo?, de José Renato Batista e Emanueli A. C. Viana, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo/.
- O Espectro do Romantismo na Filosofia Contemporânea, de Pedro Salina, em http://ermiracultura.com.br/2020/12/26/o-espectro-do-romantismo-na-filosofia-contemporanea/.
- A Intolerância Religiosa contra o Islã, de Iva Mariane Garcia Siqueira, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/02/a-intolerancia-religiosa-contra-o-isla/.
- A Prudência Limita Minha Felicidade?, de Alexandre Barbosa Chagas e Carlos Augusto Damasceno, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/09/a-prudencia-limita-minha-felicidade/.
- Intolerável: a Mutilação Genital Precisa ser Combatida, de Beatriz da Silva de Paula, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/16/intoleravel-a-mutilacao-genital-feminina-precisa-ser-combatida/.
- Relativismo Moral em “O Estrangeiro”, de Camus, de Priscila Zanon, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/23/relativismo-moral-em-o-estrangeiro-de-camus/.
- A Importância da Razão Crítica para o Desenvolvimento da Ciência, de Yohaner M. Kosloski, em http://ermiracultura.com.br/2021/01/30/a-importancia-da-razao-critica-para-o-desenvolvimento-da-ciencia/.
- Rap: Crítica e Resistência, de Thalyne Barros Soares e Isabella Krein Soares, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/06/rap-critica-e-resistencia/.
- Reflexões sobre a Prática Filosófica no Brasil, de Silas Miqueias da Silva, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/13/reflexoes-sobre-a-pratica-filosofica-no-brasil/.
- Diálogos Atemporais, de Augusto Henrique Gamarra de Souza, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/20/dialogos-atemporais/.
- A Pluralidade Histórica e os Sistemas de Valor, de Marielly Romeu Marcelino, em http://ermiracultura.com.br/2021/02/27/a-pluralidade-historica-e-os-sistemas-de-valor/.
- O Projeto Radical de Uma Filosofia Científica, de Marcio Ponciano da Cunha Junior, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/06/o-projeto-radical-de-uma-filosofia-cientifica/.
- Sobre a Percepção do Mundo e o Problema de Comunicá-la, de Thiago Vareiro Valério, em http://ermiracultura.com.br/2021/03/13/sobre-a-percepcao-do-mundo-e-o-problema-de-comunica-la/.