Sumi daqui. Por mais de um ano, sumi daqui. Fui cuidar da ansiedade, da depressão, de sobreviver a esse contexto de morte que nos cerca? Até poderia dizer isso e não seria totalmente mentira. Afinal, perdurar em tempos de pandemia é um desafio para nós, para quem amamos, para quem é importante em nossa vida. E a saúde mental anda bastante desgastada, coitada, com tantas incertezas, com a terrível missão de testemunhar tamanhos absurdos, com a vizinhança da morte, que vai ceifando vidas aos milhares, algumas delas de pessoas com quem dividimos alguns tantos trechos de nossas trajetórias.
Parei de escrever, enfim, para respirar, esse ato cotidiano ao qual estamos dando cada vez mais valor, quando nos deparamos com relatos de pessoas que não tiveram a chance de encher os pulmões de ar e continuar vivendo. Uma pausa nas ideias que guardamos, mas que queremos dividir com outras pessoas, amigas ou desconhecidas. Assim o cronista trabalha, assim ele mantém seu texto em pé, assim ele resiste, olhando o mundo para transpô-lo, ao seu modo, para o papel (ou qualquer plataforma digital que seja). Mas, por algum tempo, meu olhar nublou e desceu um pano que impediu essa visão do que está em volta. Talvez porque o que está em volta seja mesmo indizível, até mesmo em uma crônica.
“Parei de escrever, enfim, para respirar, esse ato cotidiano ao qual estamos dando cada vez mais valor, quando nos deparamos com relatos de pessoas que não tiveram a chance de encher os pulmões de ar e continuar vivendo.”
Minha quarentena se deu e continua se dando assim: com sustos, com insônias, com angústias, com lamentos, com desejos de pêsames, com breves alegrias que, infelizmente, se esvaem ao primeiro noticiário. Foi quando achei que não poderia escrever aqui em Ermira o que eu costumava comunicar. Não faria sentido, nesse período, forçar algo que naturalmente não saía. Era necessário dar um tempo neste espaço, para recuperar o fôlego, para desanuviar as vistas, para retomar a vontade de produzir algo que pudesse traduzir meu espírito. Ficar monotemático seria, como bem afirmam Machado de Assis e Dostoiévski, uma espécie de loucura. Cavar ainda mais fundo o poço da desesperança seria inútil e triste. Puxar o cordão de um otimismo tóxico seria absurdo e indelicado. Era melhor, então, calar.
Calar e ler. Ler Mishima com sua saga em que almas trocam de corpos para revisitar o mesmo personagem atormentado. Ler Rousseau com suas confissões quase enganadoras sobre si mesmo. Ler Conrad e sua aventura inusual numa ilha da América Latina onde nunca esteve. Ler Graciliano e sua cachorra que sonha com um paraíso de preás. Ler o relato das vítimas de Tchernóbil na prosa jornalístico-literária de Svetlana. Ler sobre a emboscada que matou o ditador dominicano no romance histórico de Llosa e os derradeiros dias de Bolívar na ficção realista de García Márquez. Ler para não sucumbir. Ler para não enlouquecer. Ler para sobreviver. Ler, ler sempre, até o último instante possível.
“Ficar monotemático seria, como bem afirmam Machado de Assis e Dostoiévski, uma espécie de loucura. Cavar ainda mais fundo o poço da desesperança seria inútil e triste. Puxar o cordão de um otimismo tóxico seria absurdo e indelicado. Era melhor, então, calar.”
Mas toda quarentena tem seu fim. E nesse instante, em que leio Borges e Valter Hugo Mãe, retomo a escrita para continuar. Ainda respirando. Ainda persistindo. Ainda lendo e redigindo. Até o último instante possível.