Há um homem e uma mulher. Talvez conversando. Talvez fumando. Talvez bebendo. Há um restaurante, como outro qualquer. Há uma cidade e uma rua. Sob muitos aspectos, parecidas com todas as cidades e com todas as ruas. É um dia como outro qualquer. Uma terça ou uma sexta-feira. Dia 13 ou 26. Novembro ou junho. Pouco importa tudo isso. Todos estes detalhes, da forma como foram mencionados, na realidade, importam pouco: basta imaginar a cena de um homem e de uma mulher. Como em toda parte, essa cena não tem nada de extraordinário. Em todos os lugares, em todos os momentos, há sempre um casal que se toca, que conversa, que se contempla. Um casal, enfim, não faz parte dos acontecimentos extraordinários. Um casal pode ser encontrado em todas as partes. Bem ali. Nos bairros e mais adiante. E mais distante ainda.
No seu despojamento, na sua ingenuidade tola, o homem bebe a intervalos. E, a intervalos, a mulher diz-lhe algumas palavras. Que podem ou não ser murmúrios sobre questões simples. Que podem ser interrompidas pela chegada do garçom. Que podem durar algum tempo. Em qualquer parte do mundo, um homem e uma mulher são apenas duas dicotomias: macho e fêmea, marido e mulher, amigo e amiga, companheiro e companheira etc. Quieto e circunspecto, um homem pode permanecer mudo diante de uma mulher que adora se impor pelo magnetismo de suas palavras. Um homem pode se tornar abobalhado por causa de uma mulher. Aqui e alhures. Sempre. Como agora, ali no bar.
A tarde, como se diz, pode morrer aos poucos – e a noite, como também se diz, chegar aos poucos. Os carros podem passar em sua sede de velocidade. Uma porta pode ser aberta e surgir alguém inesperado. O garçom pode ser chamado ao fundo, e, no copo, vindo da base, as bolhas de cerveja continuarem indo à tona. E pode, inclusive, ter uma música de jazz, vozes e risadas.
Além de um homem e de uma mulher, pode haver muita coisa dispersa e acontecendo ao mesmo tempo, num bar ou num restaurante, aqui ou longe – se não fossem o interesse e a atenção que esse homem, escravizado, guarda fielmente por essa mulher. O seu olhar – se é que existe de fato um olhar de desejo – é para ela, para o seu corpo firme e suave. Para os seus lábios rosados, macios, úmidos, cuja língua não se esquece de umedecê-los. Para o seu longo pescoço, modigliano. E para os seus inquietos, esverdeados e imprevisíveis olhos, cuja profundidade, que lembra a dos precipícios, perturbava-o tanto.
Se não fosse o amor que esse homem dedica a essa mulher, assim tão próxima ao seu contato, assim tão livre e felina, assim pulsando em todo o corpo, vitoriosa no esplendor de sua forma, talvez as outras coisas – as que estão fora e dentro do ambiente – se tornassem importantes e interessantes. Talvez mesmo ele as observasse, essas coisas pequenas e inúteis que são anuladas pela perplexidade do amor, se observá-las não significasse uma traição à mulher. Ali, tão perto, leve, esguia, tão próxima de um sussurro. A intervalos, esse homem bebe, lançando sobre o corpo de sua amiga olhares demorados e analíticos, como se sofresse por ela uma hipnose doentia, como se o seu olhar descobrisse, no conjunto, uma revelação singular, como se rastreasse, com a curiosidade de um técnico, um terreno novo e inusitado.
A mulher fuma e bebe também a intervalos. Discreta, quase um balão flutuando despercebido, ela sabe que naquele ambiente inaugura gestos solenes. Vendo-a assim tão indiferente e acostumada aos espaços mundanos, dir-se-ia, com alguma precisão, que ela não participa da sedução com a qual o homem tenta envolvê-la – essa mulher, magnífica e intocável. E esse homem perturbado não conhecia a bússola dos desorientados, para se aproximar dela. Ela quase nunca o olha diretamente nos olhos. Apenas cumpre o seu papel à mesa, de amiga de um homem alucinado na sua contemplação muda, de um homem que adora um corpo que não reclama o seu. Mas é próprio dos apaixonados insistirem até a exaustão, até que a última palavra os lance de uma vez ao desespero ou então os salve da perdição. O amor, como sabemos, é um soneto esponjoso.
E, pela primeira vez, ouve-se uma frase desse homem, no silêncio de sua paixão, na solidão desconfortante dos que amam – dos que amam sozinhos: “A amizade entre um homem e uma mulher nunca é transparente”. O sentido exato de suas palavras pode ser resumido assim: “Eu amo porque você existe, porque saímos juntos, porque nos vemos sempre, porque tudo em você me atrai, porque meu corpo grita desconsolado pelo seu”.
A revelação, aquela que não é dita, o apaixonado sabe escondê-la. Assim, depois de soltar a respiração de uma vez, como se tivesse de recomeçar ali a sua vida, ele a olhou e quase perdeu de novo o ar: será que ela o compreendia? O ar, esse elemento tão necessário, pelo qual um mergulhador é capaz de imprevisíveis manobras. Os tímidos também o desejam, o oxigênio.
Se ele dissesse tudo isso com a voz controlada e fixando a mulher nos olhos, procurando criar um efeito sedutor em suas frases, talvez renascesse no momento seguinte; porém, ele fala por meio de citações, a sua linguagem é sempre empolada e enigmática, e quando se trata de confessar os seus sentimentos mais secretos, ele nunca sabe por onde começar – e como dizer, de modo simples: “Eu te amo”. Sem dúvida, o seu coração dispararia veloz se ele revelasse tão facilmente que o amor dói e rói, vísceras e pensamentos, escravos e reis. Que a cabeça não acompanha o coração.
Na sua indiferença (e era isso que a tornava mais misteriosa, fascinando-o), a mulher desprezou as frases desse homem, cujo sentido escapou-lhe na maior parte das vezes; agora, ela já se sente, com efeito, habituada ao seu estilo de falar. Sempre, desde o primeiro dia em que passaram a sair juntos, ele lhe dizia frases herméticas, outras irônicas, outras citacionais, a maior parte das vezes incompreensíveis. Um amigo esquisito, que abria as páginas da enciclopédia.
Na realidade, a mulher não percebera ainda que as palavras dele mudaram: elas insistem doravante em romper a estreita fronteira que separa a amizade do amor, procurando insinuar que é imprevisível a passagem de um limite para o outro, que a amizade, opaca, esconde o amor. Talvez a mulher prefira continuar apenas no âmbito das circunstâncias – por isso é que se mostra inacessível e apegada aos acontecimentos imediatos, ruídos de bar, movimento de pessoas, fragmentos de conversa, risos esparsos, alguém falando demasiado alto, como em todos os lugares públicos. É mais do que evidente que ela não está integrada ao homem que está ao seu lado. A multidão a atrai, enquanto ele, concentrado, imagina, numa fantasia erótica, os sentidos e os cheiros de seu corpo despojado, nu, oferecendo-se aos toques. É por isso que ele se dispersa em regiões impenetráveis de seu íntimo. É por isso que ela não o ouve, por mais que ele tente falar, citar, respirar, sair do sufoco, chamar pelo ar. O oxigênio, esse alimento para a alma conflagrada.
E sem saber como vencer aquela muralha instalada em sua linguagem, impossibilitado enfim de fazer uma demonstração de seus sentimentos e de escapar, de uma vez por todas, da relação fácil e banal que é sustentada pela amizade, ele retoma as suas atitudes anteriores. O ar já não lhe é tão rarefeito. A cerveja continua lançando as suas bolhas à tona. Os afogados, debatendo-se no rio, antes de submergirem, devem produzir bolhas semelhantes, como aquelas no copo que sobem, uma a uma. Ele pode, por fim, tentar mais uma vez ser compreendido. As bolhas devem também oferecer esperanças, por mais efêmeras que sejam.
Boiando na superficialidade que nunca procurou esconder, indiferente e abstrata, a mulher talvez examine mais uma vez os demais ocupantes das mesas, repletas no ambiente. Talvez pense em coisas disparatadas. Talvez se distraia mesmo com a sua dispersão. E acende, em seguida, outro cigarro, sem perceber com clareza o que significava a frase que o seu companheiro acabara de pronunciar, num sopro gemente: “A amizade entre um homem e uma mulher nunca é inocente”. Eu te desejo, eu te desejo, o meu sangue ferve e as minhas narinas inflamam-se, um tremor corporal emudece a minha garganta: ele falou todas estas frases, fechou os olhos para reprimir a sua vocação de derrotado, e só os abriu porque a mulher lhe disse: “Ah, o intelectual hoje está a todo vapor!”. Se é que ele, depois do esforço, ouviu a ironia, se é que ele ouvia alguma coisa, se é que os apaixonados ouvem bem. A essa altura, ele se sentia como uma mosca debatendo-se na vidraça.
Esse homem, assim ferido e desprotegido, talvez procure a palavra exata, a palavra completa que economize ao máximo a expressão do seu atônito amor. Se ela sabe que ele a ama, como talvez alguém jamais a houvesse amado, ela finge desconhecê-lo, esse amor feito de carícias eventuais, de braço casual no ombro, que, no plano da amizade, podem ser compreendidas como toleráveis e dessexualizadas. Contatos à toa, sem liga. Ou então ela não se interessa absolutamente pelos seus sentimentos, mulher familiarizada com os homens, mulher sem crise diante do que lhe é oferecido. Talvez ela se interesse por outro homem, que não este que a contempla, que a corteja, que a atormenta. Talvez ela se interesse por outra mulher. O pior sentimento para os apaixonados é a incerteza, ele sabe disso, essa incerteza da mulher desejada pela qual se sonha à noite.
Tentando fazer insinuações que possam despertar nela a curiosidade por tudo aquilo que ele tem a dizer, escondido e reprimido secretamente durante meses como uma lava que se incendeia lentamente para explodir tempos depois, ele diz, paixão vulcânica, como se constatasse, naquele momento, a maior sabedoria de sua vida: “Os sagitarianos são facilmente dominados pelas mulheres de Gêmeos”.
A cerveja afoga, pode ser que o rio – que corre além da cidade – beba melhor a minha sede, as bolhas são as mesmas, na cerveja e no rio. E criando uma situação cômoda de interpretações, ela responde, mulher desviada de seu itinerário, mulher à deriva com o sentido das palavras: “O signo de Gêmeos produziu também grandes mulheres”.
Ah, passion inutile, sacrilège des mots! – ele pensa, atordoado pela inutilidade que acompanha as suas palavras, nunca mais ousaria verbalizar o que sente por alguém se dizê-lo atraísse sempre, como acabara de perceber, equívocos, sentidos perdidos no ar. Assim derrotado, o seu fôlego agora estava frio. E sentir somente a ausência de sua identidade nunca refletida naquela mulher e talvez em nenhuma outra que fosse parecida com ela. Mais que isso, perceber ainda que o sentido da identidade é somente aquele encontrado pelas palavras: o teu corpo é atravessado antes pela minha voz, o teu corpo deve ressoar antes com as minhas palavras de granito, o teu corpo deve abrir-se ao som de meu verbo.
“Nenhum corpo caminha sem desejos. É o desejo na frente e o corpo atrás”, ele lhe disse na sua simplicidade, sem a costumeira arrogância dos que evocam a sua paixão, mas com ânimo renovado, mesmo com a terra fugindo aos seus pés e o ar, pior ainda, quase desfeito. Na verdade, o que ele pretendia dizer era bem mais simples: eu te desejo, hoje e sempre, amor inútil. “Ei, você não se cansa de ser professor? Falemos de outra coisa!”
Pela primeira vez, ele examina o garçom ocupado com os clientes. O seu olhar segue a trajetória de todos os seus movimentos. A rua – ele verifica também – começa a esvaziar-se. Quando olha para fora, vê que as lâmpadas já estão acesas: a noite havia chegado sem que ele percebesse a queda das sombras. Como havia perdido a noção do tempo, não sabia ao certo quanto durara aquele encontro – talvez horas, talvez dias, talvez uma vida? talvez o tempo de três cigarros –, toda aquela tentativa de se expor inteiro à mulher, o intervalo que se instala entre os que amam fica sempre perdido entre dois momentos, o antes e o depois, o intervalo nada mais é do que a duração tensa entre dois sentimentos: a esperança e a decepção. “Há muita gente esta noite… Acho melhor irmos embora” – ela falou.
A cerveja, uma vez que ficara longo tempo no copo, diminuíra as suas bolhas, na superfície restava apenas a espuma espraiada, cujas marcas manchavam as suas bordas, essa cerveja amarga, essa alusão prematura ao líquido que afoga os apaixonados, escravos ou reis – a cerveja e o rio são formas diferentes de encerrar uma história de amor. Ele o sabia naquele instante, afundado na sua mágoa.
“Sagitário dos que têm a força selvagem dos centauros, eu nunca mais serei o mesmo, a renúncia de Afrodite envenenou, com setas profundas, o pobre coração de Príapo.” Ao final da frase, a mulher olhou para o sagitariano e, com o descaso das que não amam, com o súbito espanto dos que se embaraçam com as referências, ela lhe sorri para ser apenas a acompanhante agradável, sem perceber que o homem, derrotado, tem a face contraída, as mãos geladas e o sangue envenenado. Por sua vez, ela sabia que dormiria sozinha.
Antes de saírem, o homem examina, pela última vez, o ambiente ruidoso, o cenário alegre de um intervalo em sua vida que jamais seria recuperado, onde, em algum lugar, em qual dimensão fragmentária do tempo?, repousavam as suas palavras, a sua ansiedade e o seu enigma de homem descoberto nas suas mais viris esperanças de significar uma mulher, distante e impenetrável. Esse homem e essa mulher, assim esvaziados, deixam o bar.
As ruas expõem aqui e ali contornos diversos, formas evasivas de sombras expressionistas, tons ora escuros, ora cinzas. “Ah, que bela noite triste! Boa pra encher o ar de pulmões, os afogados de rio…” – ele diz, irônico e reprimido, despedindo-se da mulher, não sem antes de ela perguntar, à deriva mais uma vez com o sentido das coisas, por que os intelectuais não são pessoas simples, como todas as demais pessoas.