O livro Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, é um acontecimento literário. Nos últimos anos, poucas obras no Brasil tiveram um impacto tão grande quanto este trabalho. Ganhou prêmios, suscitou discussões, entrou nas listas dos mais vendidos e pautou debates muito importantes sobre racismo e identidade. Ler um romance que causa tanta repercussão passou a ser, para quem gosta de literatura, quase uma obrigação. Fui lê-lo, portanto, e o que ele me causou não está exatamente em todos esses efeitos que listei acima. Na verdade, Torto Arado, para mim, despertou um senso de ancestralidade que os personagens do livro sabem tão bem trabalhar.
Na grande jornada das irmãs Bibiana e Belonísia e sua família, somos apresentados a um cenário de desigualdade, de exploração da mão-de-obra dos mais fracos, das condições desumanas que levam contingentes enormes de pessoas à invisibilidade. E o primeiro teste desse clã – há outros anteriores, que vamos conhecendo aos poucos – é uma brincadeira entre as duas meninas com uma faca misteriosa pertencente à avó (uma senhora poderosa) e que acaba causando um terrível acidente, deixando uma delas muda. O sangue que escorre logo no primeiro capítulo ainda vai inundar a narrativa outras vezes. Um sangue que traz tragédias, mas que também marca uma ancestralidade forte e inquebrantável entre as personagens.
“São, sobretudo, matriarcas fortes, que crescem nas dificuldades, que enfrentam desafios imensos exatamente por serem mulheres. Maridos agressivos, apagamento de suas vontades, a lida com o machismo arraigado em seus círculos pessoais são alguns desses obstáculos, mas que todas enfrentam não só com altivez, mas com destemor. As quatro são as donas da história, não há dúvida.”
Com muita habilidade, Itamar vai apresentando suas heroínas, que não são só as duas crianças que protagonizam a primeira e impressionante cena. A mãe e a avó de ambas, Salustiana e Donana, também têm uma participação fundamental na construção desse imaginário entre o mágico e o árido que Torto Arado traz. São, sobretudo, matriarcas fortes, que crescem nas dificuldades, que enfrentam desafios imensos exatamente por serem mulheres. Maridos agressivos, apagamento de suas vontades, a lida com o machismo arraigado em seus círculos pessoais são alguns desses obstáculos, mas que todas enfrentam não só com altivez, mas com destemor. As quatro são as donas da história, não há dúvida.
E é justamente delas que provém o que mais impressiona no trabalho de Itamar Vieira. Ele consegue dar vulto ao que essas mulheres representam não só em suas vivências, mas nos lugares que ocupam em uma hierarquia que remete a um passado valioso e que é preservado por todas elas. Essa ancestralidade é o mais singular neste livro, é a fonte de sua força e originalidade. Ela está tão vibrante no texto que nos faz pensar nos nossos próprios antepassados, no DNA que temos conosco, nos ensinamentos que guardamos dos mais velhos. A mim fez lembrar de antigas histórias contadas e repetidas por meus avós, em que casos sobrenaturais têm lá seu espaço, de vínculos com o desconhecido, em que religiosidade e lendas se misturam e cimentam nosso imaginário mais caro e íntimo, regado a partos e bênçãos.
Nas cerimônias comandadas pelo parteiro e benzedor Zeca Chapéu Grande, o homem que morou com uma onça e que comanda os pontos de umbanda mais respeitados da fazenda onde a comunidade quilombola vive, há um pouco de todos nós, um pouco de um Brasil profundo que na maior parte das vezes é desprezado. Os rituais falam muito de nossas origens, ainda que haja muita gente que desconheça essas ligações. A identificação com aquelas pessoas, com sua força para resistir a latifundiários e seus capangas, a secas terríveis e enchentes inclementes, às tentativas de desconstrução de sua história e de seus sentimentos, é imediata para quem tem a consciência de que nós somos, também, o que nossos antepassados foram e fizeram. Essas narrativas ancestrais são envolventes e Itamar sabe manejá-las com maestria, sem estereótipos ou maniqueísmos.
É no sertão da Bahia que a história se passa, envolvendo os vínculos com uma religiosidade que ajuda a dizer quem aquelas personagens são, em suas fortalezas e suas fragilidades. Impossível não pensar que também é nesse agreste baiano que surgiu o Arraial de Canudos e seu líder, Antônio Conselheiro, dando mote ao clássico Os Sertões, de Euclides da Cunha. Diferente do escritor do final do século 19, Itamar não trata o sertanejo só como “um forte”, o que faz Euclides, com seu olhar inexoravelmente preconceituoso. Aqueles sertanejos são fortes por motivos insondáveis para o jornalista que fez a cobertura da Guerra de Canudos para o jornal O Estado de S. Paulo, transformando suas reportagens em um dos livros mais populares de nossa literatura. Itamar aprofunda essa visão, mergulha em suas origens, escapa do simplismo, exercita uma antropologia – que também é afetiva – impecável.
“Poucos livros que tenho lido tiveram esse poder de me fazer recuperar as narrativas ancestrais que amparam não só a mim, mas a todos nós.”
Por isso Torto Arado é um acontecimento. Poucos livros que tenho lido tiveram esse poder de me fazer recuperar as narrativas ancestrais que amparam não só a mim, mas a todos nós. Bibiana e Belonísia, Salustiana e Donana são formidáveis em suas decisões, suas dores e suas reações. São mulheres destemidas para enfrentar agressores e até pistoleiros, capazes de fugir para viver seus amores e se arriscarem para proteger os outros. Isso, sim, faz dessas personagens quilombolas e sertanejas, sobretudo, fortes. De uma força que muitos de nós ainda precisamos descobrir, quem sabe em nosso passado; quem sabe em nosso interior.
Livro: Torto Arado
Autor: Itamar Vieira Júnior
Editora: Todavia
Preço médio: R$ 36,90