Doutora em Ética e Filosofia Política pela Universidade Federal de Minas Gerais, a pesquisadora mineira Paula Gabriela Mendes Lima lançou recentemente o livro Do Interesse à Paixão na Política – Uma Trajetória Filosófica de Alexis de Tocqueville (Appris Editora). No volume, que é resultado da sua tese de doutorado, Paula empreende um amplo estudo da obra de Tocqueville (1805-1859), oferecendo ao leitor uma análise original das categorias políticas do interesse e da paixão da forma como são desenvolvidas pelo autor francês, um dos grandes nomes do pensamento político moderno. A hipótese desenvolvida pela pesquisadora é de que ambas as categorias operam como princípios que propulsionam a ação política dos indivíduos no espaço público e são fundamentais para compreender os mecanismos da democracia moderna. Paula Lima é também advogada, consultora jurídica da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e concluiu há pouco seu pós-doutorado em Filosofia Política pela UFMG. Atua ainda no movimento social, em práticas de acolhimento de mulheres. Confira a seguir a entrevista que ela concedeu, por e-mail, a Ermira Cultura, em que discorre sobre o seu livro e também adverte para o fato de que o Brasil já pode estar vivendo o que Tocqueville denominou de “despotismo democrático”.
Na introdução do seu livro Do Interesse à Paixão na Política – Uma Trajetória Filosófica de Alexis de Tocqueville, você escreve que, na obra tocquevilliana, as categorias políticas do interesse e da paixão são fundamentais para a conservação e o funcionamento da democracia moderna. Você poderia definir rapidamente essas categorias e dizer como elas se complementam ou, por vezes, se confrontam?
Em resumo, compreendo neste livro que o interesse e a paixão são princípios de ação que conduzem o homo democraticus na esfera pública. Os homens e as mulheres na modernidade são individualistas e tendem a viver apenas suas questões domésticas e suas vidas privadas. Estão cansados e sem tempo para temas referentes à coletividade. A questão é que o isolamento do individualismo pode decompor o corpo social até que ele não mais exista. Então, na minha pesquisa, investiguei sobre como podemos nos impulsionar para a ação coletiva e nos mantermos unidos em sociedade. As possíveis respostas encontradas, a partir da análise das obras de Alexis de Tocqueville, referem-se aos mecanismos das categorias do interesse e da paixão, sendo ambos princípios ou molas propulsoras da ação que conduzem o homem ao agir coletivo e à ocupação dos espaços públicos. Interesse e paixão não são categorias que se opõem. Uma não exclui a outra, mas há predominância de uma sobre a outra dependendo do contexto social e político e das questões que estão em jogo em determinado momento.
No que diz respeito especificamente à categoria do interesse como um princípio democrático, de que forma ela é desenvolvida no pensamento tocquevilliano, ao longo dos dois volumes do seu grande clássico, A democracia na América? Há vários tipos de interesse?
Não há um conceito monolítico sobre o termo interesse em Tocqueville. Na verdade, Tocqueville não tem um só conceito de quase nenhuma categoria política. O que temos é uma categoria que se apresenta com vários significantes. Esses significantes não são claramente expressos, mas podem ser deduzidos a partir de análises semânticas do termo, considerando cada contexto em que ele se apresenta nas obras. O meu enfoque foi na compreensão do que seria o interesse nos dois volumes de A Democracia na América. No primeiro volume, o termo interesse é expresso como o resultado da constituição de uma sociedade moderna e democrática que se funda na igualdade. Fundada esta sociedade de iguais nos Estados Unidos, o interesse se apresenta como um elemento que mantêm os laços entre as pessoas. Então, no volume 1 de A Democracia na América, temos a concepção de como o interesse se faz como uma categoria necessária para a conservação do corpo social, apresentando-se como interesse individual, interesse comunal (referente à manutenção dos interesses das comunas) e interesse nacional. No volume 2, o interesse vincula-se à constituição do homo democraticus, sendo indispensável para se pensar em como a novidade deste novo homo estrutura uma nova forma de relação social e política. Nesse sentido, os interesses constitutivos do homo democraticus refletem suas ações e dão alicerce para a construção de algo novo e eles podem ser nomeados como interesse bem compreendido, interesse por ideias gerais, interesse pelas coisas do mundo material, interesse nas relações que se estabelecem entre si e com a sociedade. Tem-se com isso a apresentação de oito semânticas possíveis para a categoria do interesse na obra A Democracia na América de Alexis de Tocqueville.
Apesar deste destaque dado ao interesse na obra de Tocqueville, você tem o cuidado de não reduzir o pensamento do autor a uma variante da corrente utilitarista encabeçada por Bentham. Em que medida a doutrina do interesse em Tocqueville, em particular do interesse bem compreendido, vai além do utilitarismo?
A principal questão sobre este ponto é perceber que Tocqueville não apresenta uma democracia que se funda numa concepção utilitária, que ignora o sacrifício autêntico, puro e desinteressado do corpo político. Tocqueville utiliza-se de termos correlatos ao léxico político gramatical do utilitarismo, como útil, utilidade, interesse, bem-estar etc., para descrever elementos que representam categorias que não são um fim em si mesmo, mas são meios para a construção de elos entre indivíduos que compreendem a importância da manutenção do corpo social. É exatamente aqui que temos o interesse bem compreendido, como uma doutrina que se constrói com o tempo nas sociedades e cria nos homo democraticus o gosto e a compreensão da importância de se ocupar das coisas públicas e do agir comum. A doutrina do interesse bem compreendido estende a sua ação para além da doutrina utilitária, reconhecendo a necessidade de, pelas luzes, dar ao homem a possibilidade de realizar um cálculo racional que conduza o indivíduo para a melhor forma de conservação da sociedade. Não é um mero instrumento de satisfação de utilidades.
Tocqueville afirma em sua obra que a democracia permite o surgimento de um novo tipo humano. Qual é o perfil desse homem democrático descrito pelo autor?
O novo tipo humano é o que estou chamando aqui de homo democraticus. Há um movimento circular, pois o processo democrático é capaz de constituir esse novo indivíduo e é, ao mesmo tempo, constituído progressivamente por ele. Esse novo indivíduo surge com a queda da aristocracia que é um estado social em que a desigualdade e a ausência de mobilidade social preponderam. A democracia rompe com esse estado social para instituir um espaço, fundado na igualdade, onde é possível mudar o status social do pobre e do rico, todos podem adquirir fortuna, podem buscar conforto para suas vidas privadas. Esse novo homo democraticus é um indivíduo de desejos, inquieto diante das diversas possibilidades de conquistas e que está sempre buscando algo novo e mais conforto. Tocqueville apresenta como um importante sentimento do homem democrático a inveja. Para ele, esse homem, ao ver o seu vizinho com algo melhor ou mais confortável, imediatamente cria para si uma necessidade de ter igualmente esse algo. É uma busca incessante para a satisfação de necessidades permanentemente criadas. Isso pode trazer grande instabilidade social, mas também pode refletir em ações coletivas e em ações voltadas para inovações e o desenvolvimento social e econômico.
Sobre a categoria da paixão, a sua análise parte de uma obra memorialística de Tocqueville, Souvenirs, em que ele relata a sua experiência como ator político no conturbado período que vai desde as vésperas das jornadas revolucionárias de 1848 na França até pouco antes do golpe de 1851, quando Luís Napoleão pôs fim à Segunda República e se autoproclamou imperador. Como você situa esse livro dentro do conjunto da obra de Tocqueville? Em que aspectos ele ilumina os textos mais teóricos do autor?
Esse livro não é muito estudado ou investigado, mas é uma preciosidade. Alexis de Tocqueville escreve A Democracia na América com o objetivo de ser reconhecido, demonstrar sua capacidade reflexiva intelectual e se posicionar, pois quer garantir um cargo político na sociedade francesa. Ele é eleito como deputado para atuar na Assembleia Nacional e vivencia um período importante da história política francesa como um ator político. O Souvenirs é a sua leitura sobre esse período e é onde ele apresenta reflexões teóricas sobre a prática experienciada de uma sociedade que ainda não é uma democracia, mas busca se constituir como tal. É, portanto, um livro que põe em movimento e em questão as principais hipóteses apresentadas no percurso do pensamento tocquevilliano. Souvernirs é certamente uma obra que nos possibilita uma maior compressão de como as ideias da democracia tocquevilliana podem ser lidas em países que estão em contexto e em momento diferentes dos do EUA no início do século XIX. Além disso, Souvenirs traz em seu bojo várias mudanças no percurso do pensamento de Tocqueville, sendo uma obra indispensável para dialogar com todo o pensamento do autor.
Tratando agora da paixão, quais são os contornos que ela adquire como categoria política dentro do Souvenirs?
A paixão em Souvenirs se apresenta como um sentimento intenso que ofusca a razão e agita a alma dos homens para que ajam de forma insurgente a fim de satisfazer os seus desejos de mudanças sociais e políticas. Para Tocqueville, o povo, durante a Revolução de 1848, constituía-se politicamente pelo espírito de paixões ambiciosas e eram elas as categorias principais que inspiravam e moviam as ações políticas. Ele cita que se vive um período, na França, de paixões e desejos de diversas facções que parecem inviabilizar a ordem estável e regular da democracia. A paixão é o novo sentimento do homo democraticus em 1848 e ele cita, no contexto da paixão na política, as paixões revolucionárias, as paixões demagógicas, as paixões guerreiras e a emoção popular. A paixão, no contexto dos Souvenirs, é o princípio de ação preponderando para conduzir o homem nas suas ações coletivas.
“Para Tocqueville, o agir racional refere-se ao agir a partir de uma educação política”
Ainda em Souvenirs, Tocqueville se mostra um crítico feroz da Monarquia de Julho, que era dominada pela alta burguesia e que caiu com a Revolução de 1848, mas também não se revela propriamente um partidário dos revolucionários republicanos e socialistas. Você escreve que ele acreditava ser necessário um agir racional para o funcionamento das instituições. No que consiste esse agir racional?
Para Tocqueville, o agir racional refere-se ao agir, a partir de uma educação política, de forma fundamentada e na busca da estabilidade das instituições livres racionalmente construídas e positivadas no corpo político. Pode-se dizer que é o agir conforme a doutrina do interesse bem compreendido.
Além de Rousseau e Montesquieu, você também faz uma aproximação interessante no livro entre Tocqueville e Maquiavel. Que influência esses três autores exerceram sobre Tocqueville?
Tocqueville praticamente não cita outros autores em suas obras, mas, para mim, é perceptível a forte influência de Rousseau, Montesquieu e Maquiavel. Montesquieu parecer ser uma inspiração para o volume I de A Democracia na América, tanto pela semelhança das construções metodológicas de escrita e divisão de partes de seus textos, quando em relação aos diálogos teóricos possíveis entre esses autores. Como exemplo, só para citar, verifica-se que as teses tocquevillianas sobre o estado social dialogam com a concepção de espírito geral de cada forma social proposta por Montesquieu e acredito que Tocqueville radicaliza a concepção de virtude de Montesquieu. Em relação a Rousseau, suas conexões são perceptíveis no volume II de A Democracia na América, especialmente em relação aos debates sobre a vontade geral e o pacto social. E, para mim, Tocqueville aproxima-se de Maquiavel em Souvenirs ao analisar a divisão da sociedade em dois “humores” e no debate sobre as ações e o movimento republicano.
Tocqueville costumava se autodenominar como “um liberal de uma nova espécie”. Há um grande debate entre os estudiosos de Tocqueville sobre a sua posição no espectro político: conservador, liberal, republicano, mesmo um social-democrata avant la lettre. Como você classificaria Tocqueville ou é impossível enquadrá-lo em apenas um rótulo?
Não acho possível encaixar Tocqueville em uma posição. O resgate dos estudos do pensamento tocquevilliano se deu por Raymond Aron num momento em que havia uma guerra fria de ideias entre capitalismo e comunismo. Tocqueville aparece neste momento com um autor capaz de dar respostas que não se contrapõem ao desejo do proletário e não se contrapõem às necessidades de um sistema de capitais, mas ele surge na leitura de autores que tinham o objetivo de enfrentar as ideias do comunismo em expansão. Por isso, durante vários anos, Tocqueville foi descrito como um autor que representa uma direita ou um liberalismo conservador. Mas esta não é mais a leitura que os estudiosos do pensamento de Tocqueville apresentam. Tocqueville não é um autor do liberalismo econômico, mas tem hipóteses e ideias de um liberalismo político do início do século XIX. Por outro lado, ele também tem hipóteses e ideias que representam uma tradição republicana desse mesmo período, apesar de não ser um republicano. Enfim, Tocqueville é um autor que não se enquadra em um rótulo e pode ser lido a partir do diálogo com diversas tradições de pensamento e perspectivas.
Levando em conta a situação brasileira, como poderíamos descrever o nosso atual cenário político dentro dessas categorias que você explorou em seu livro, o interesse e a paixão? Principalmente em função da disseminação do discurso de ódio no país, você considera que há uma prevalência das paixões? Qual caminho poderíamos vislumbrar a partir da leitura da obra de Tocqueville para pensar em saídas para a superação deste momento dramático da vida nacional, em que a própria democracia se vê em risco?
Neste momento me parece que não há o predomínio nem do interesse nem da paixão na política, pois essas são categorias que integram e auxiliam na conservação do espaço público e da democracia. O que temos é uma sociedade já entregue ao que Tocqueville denomina de despotismo democrático, forma social que coloca em risco e pode destruir a própria democracia. Esse despotismo, cunhado pelo filósofo, decorre, especialmente, do isolamento e da não participação na política, que deixa vazio o lugar do poder de mando e organização da sociedade. Esse lugar vazio é facilmente ocupado por um déspota, cujo discurso de ação é a ordem que torna possível aos indivíduos desfrutarem de seus bens materiais com segurança. Esse amor à ordem parece abrir o caminho para o poder absoluto, um poder central, imenso e tutelar que se torna a melhor solução para a manutenção da organização social democrática. Por esta via, na democracia, o cidadão ama e deposita sua confiança no poder central, ficando suscetível ao despotismo e à tirania. O despotismo democrático é, para Tocqueville, uma das formas de opressão possível no estado social moderno e me parece que é isso algo muito próximo da nossa experiência política atual.
Livro: Do Interesse à Paixão na Política – Uma Trajetória Filosófica de Alexis de Tocqueville
Autora: Paula Gabriela Mendes Lima
Editora: Appris
Páginas: 222
Preço: 55 reais
Mais informações: editoraappris.com.br