Coautor: Weiny César Freitas Pinto [1]
Porém, existem casos que contrariam esse princípio, ou seja, forçam o organismo a aumentar a excitação. O que é característico desses casos é o retorno de alguma experiência passada, que é sentida como desprazer. Devido à insistência de retorno a um estado anterior, Freud descobriu a “compulsão à repetição”. A partir dessa tendência regressiva, é possível pensar na premissa de que o estado mais anterior do organismo seria o estado inorgânico. Essa suposição leva à hipótese de que existe uma pulsão de morte, isto é, uma tendência do ser vivo a restabelecer o seu estado inorgânico.
Todavia, há uma força antagônica à pulsão de morte, que possui a característica de preservação da vida: trata-se das pulsões sexuais, manifestações da existência de uma “pulsão de vida”, que, por sua vez, almeja a união de duas células germinais diferentes, ou seja, a união de um óvulo e um espermatozoide, a preservação da espécie por meio da atividade sexual.
Freud recorre à biologia procurando provar suas premissas acerca da pulsão de vida – pulsões sexuais – e da pulsão de morte, consequentemente também da “compulsão à repetição”. Ele encontra nos biólogos apoio à sua hipótese. Biologicamente, entre os protozoários – organismos unicelulares –, a morte é inevitável e, quando estes são expostos ao seu próprio conteúdo metabólico – trocas químicas no interior do organismo –, perdem força e diminuem de tamanho até a morte. Em contrapartida, há uma troca química especial entre os protozoários denominada copulação, fazendo com que sua energia seja revigorada e, em decorrência disso, perdurem por mais tempo.
Portanto, as pulsões sexuais – pulsão de vida – levam o organismo a tomar o outro como objeto e assim neutralizam parcialmente suas pulsões de morte (Freud, 2020). O objetivo desse prolongamento, que constitui a vida, é garantir que o organismo atinja seu objetivo – a morte – por causas internas e naturais. Porém, as pulsões sexuais podem ser direcionadas não apenas para o outro, como objeto, mas também para o próprio Eu. Quando direcionadas ao Eu, são denominadas de investimento narcísico e cumprem uma função que não é restrita à reprodução.
Após aprofundar sua teoria pulsional, instaurando em Além do princípio de prazer um “novo” dualismo das pulsões (pulsão de morte–pulsão de vida/sexual), Freud, ao conceber a morte como finalidade da vida, afirma adentrar na filosofia de Schopenhauer e compara a sua teorização a respeito da “pulsão sexual” à noção de “vontade de viver” do filósofo. Mas em que sentido a “pulsão sexual” se aproxima da “vontade de viver”? Esses conceitos se diferenciam? Em que consiste a sexualidade para Schopenhauer?
O mais essencial para a Vontade é a manutenção da espécie, pois somente através dela a vida pode ser garantida. O impulso sexual atende a esse fim, a preservação da espécie. Mesmo que a espécie seja o mais essencial, a ação do indivíduo ainda é necessária e isso muitas vezes envolve sacrifícios, como na clássica história de Romeu e Julieta, em que ambos “sacrificam” suas famílias para viver um grande amor. Todavia, o intelecto atua para atingir fins individuais, cumprindo a função de ferramenta de sobrevivência, dadas as dificuldades impostas pelo ambiente. Mas como a espécie garante sua permanência se a individualidade pode sofrer com isso? Ela reveste o indivíduo de uma ilusão, na qual ele acredita estar fazendo um bem a si mesmo, quando na verdade age a favor do impulso sexual. Essa ilusão é chamada de instinto que, por sua vez, trabalha a favor da espécie.
Em suma, a vontade de vida como impulso sexual tem por finalidade a objetivação da Vontade em um indivíduo procriado por um pai e uma mãe. Esse impulso sexual reside nos futuros pais que, quando acreditam desejar um ao outro, em realidade atendem a um fim metafísico: o indivíduo que ainda está por vir. Nesse caso, o medo e a fuga da morte se dão porque todo animal é pura vontade de vida, logo, a morte é a sua maior ameaça. No fim das contas, o querer viver se manifesta no indivíduo como fome e medo da morte e, em relação à espécie, como impulso sexual e cuidado com a prole.
A “pulsão sexual” de Freud e o “querer viver” de Schopenhauer, portanto, apresentam convergência quanto à tendência à preservação da vida: ambas são forças criadoras. Assim como a “pulsão sexual” visa à união de duas células germinais diferentes, o “querer viver” da espécie almeja a união de um pai e uma mãe, visando um futuro indivíduo.
Em contrapartida, esses dois conceitos (pulsão sexual e querer viver) carregam diferenças fundamentais. Para Schopenhauer, o “querer viver” é fruto de uma instância metafísica, enquanto, para Freud, a “pulsão sexual” tem embasamento biológico. Freud supõe que as pulsões sexuais prolonguem a vida apenas para que o organismo morra por causas internas, mas, para Schopenhauer, o “querer viver” trabalha em função da necessidade metafísica de individualização. “Querer viver” e “pulsão sexual” têm metas diferentes, mas convergem quanto à atuação de uma força unificadora que se assemelha a Eros, deus grego que preserva e mantém tudo unido.
Referências
SCHOPENHAUER, Arthur. Metafísica do amor e metafísica da morte. Tradução de Jair Barboza – São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br.
O texto inaugura a segunda edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios.