Na sala
Eu vejo quando ele fica por último de propósito na sala enquanto todos se dirigem à cozinha. Observo ainda quando, ao invés de acompanhar os demais, hesitando sobre o rumo que deveria tomar, segue por fim em outra direção: aquela que conduz ao quarto – e, diante da porta, tenta entrar. A porta está trancada. Suponho – e essa suposição é correta – que deve ter ficado irritado e decepcionado com esse fato, pois esperava – estou quase certo disso também – que a porta estivesse destrancada. Então, uma vez que não atingiu os seus objetivos, reúne-se aos outros na cozinha. A noite de sempre. La bella notte, la nostra, como em certos filmes italianos dos anos 1970.
Na cozinha
Enquanto todos comem bolo, bebem café e conversam, numa reunião algazarrenta, ele parece não se interessar por nada do que acontece na cozinha, mantendo-se circunspecto e indiferente, com a sua xícara fumegante em frente ao rosto, a cabeça apoiada na mão direita, a grande mesa, por fim, ocupando quase todo o espaço, todos em volta de sua forma lenhosa.
Ninguém percebe que ele está alterado nessa noite talvez porque todos estejam excitados com o assunto predominante: o concurso de fantasias que seria realizado dentro de alguns dias. O sonhado dia festivo que, todos os anos, atraía a atenção.
Às vezes, sorri, e noto que é uma demonstração forçada de convivência, só para disfarçar a sua contrariedade. Em outros momentos, agita-se, desconfortável, na cadeira e deixa cair um pedaço de bolo sobre a toalha. Quando interpelado, responde a uma pergunta sem, contudo, desenvolver os seus habituais (e engraçados) comentários. E assim ele permanece todo o tempo, enquanto dura aquela reunião – e observo que está triste e apreensivo: essas coisas só acontecem de vez em quando, ou seja, quando a gente diz amar, um amor louco que desconcerta e oprime. Um amor de adeus entre amigos?
No quarto
Você ouve quando ele gira a maçaneta cuidadosamente e empurra a porta, encontrando resistência. A porta range, mas não cede. Ele solta a maçaneta. Quieto, sem fazer nenhum ruído, como um felino caçando, você ouve ainda a sua respiração ofegante, que ele não consegue controlar, parado em frente à porta. A sua respiração, pelo visto, deveria ser mais que um apelo. Pouco depois, você ouve o final de seus passos pelo corredor, levemente pisando nos tacos, dirigindo-se sem dúvida à cozinha, onde se encontram os amigos.
Insônia
Você está preocupado e não consegue dormir. A partir do momento em que ele disse que estava apaixonado por você, tornou-se insuportável e perigoso, sobretudo dentro do carro, quando dirigia igual a um louco pelas ruas estreitas. Então, ele disse, aos gritos, muitas coisas nesse momento: que amava você desde a época em que morava em Berlim, que você nunca teve a mínima consideração por ele, que você era cruel, além de outras acusações que você esqueceu em seguida, pois estava, naquele momento, assustado com a reação dele e com a possibilidade nada improvável de o carro bater. Ele, do seu jeito impulsivo e obcecado.
Depois desse incidente, ele passou a agir de modo estranho, como se confessar um sentimento fosse algo proibido e culpado. No caso dele, era uma complicação: você sabia que, camuflado atrás daquela confissão atabalhoada, imperava um sério conflito religioso, do qual ele jamais conseguiria se desvencilhar sem viver uma espiral de culpas e ressentimentos. Não há dúvida de que ele agira de modo ridículo e tolo. Como consequência, você perdera a confiança em suas atitudes, antes francas e alegres. E agora só faltava mais essa: por causa da festa, decidira dormir em sua casa. Você sabe que essa foi uma desculpa esfarrapada que ele arranjara para se aproximar mais e ficar procurando invadir o seu quarto, a sua intimidade, o seu corpo, mesmo sabendo que você sente apenas amizade por ele, amizade de muitos anos, que perdeu de uma vez a sua inocência, que – você pressente – poderá acabar a qualquer momento, caso ele continue forçando você a amá-lo, apesar de lhe ter dito que tudo não passava de um engano, que amigos como vocês dois não poderiam se amar assim e que, diante das circunstâncias, o melhor seria desistir desse enleio, para o próprio conforto de ambos. Para a sua paz interior, você sabia que era preciso evitá-lo a todo custo.
Na cozinha
Ana pergunta se todos querem mais alguma coisa e, em seguida, recolhe as xícaras, tampa o bolo com um pano de prato e faz, sem muito interesse, uma observação sobre o terremoto no Peru. Um por um, todos saem, ficando de repente a cozinha vazia com o seu odor característico de comida, as cadeiras fora do lugar. “Apague a luz ao sair”, diz Ana. Sem sufocar o seu mal-estar, ele empurra o interruptor e se reúne aos demais na sala, sentando-se numa grande poltrona.
Na sala
Ana coloca um disco de Ravel, o Concerto para piano e orquestra em Sol maior, e depois acende a pequena luz do abajur. Eu olho para ele, para os seus olhos semicerrados como se apenas a música o envolvesse. Que efeitos a música causaria sobre o seu espírito atormentado? Ele estaria agora imaginando um romancezinho barato à luz de velas? Um cantinho íntimo, onde um céu estrelado provocaria confissões lúbricas? A fantasia das lantejoulas das bichas?
Abandonado em sua poltrona, pressinto que ele sofre e talvez (isso é bem provável) não suporte a si mesmo (o seu fracasso), controlando os seus impulsos, impedidos de se realizarem. Ele se levanta e parece que se dirige ao banheiro, numa fuga manjada. Seja qual for o pretexto de sua saída, não tenho nenhuma dúvida de que ele fará nova investida contra aquela porta. Suponho ainda que, se ela estiver ainda trancada, sentirá outra vez ódio pela rejeição, e sofrerá intensamente. Ele passaria a odiar dali em diante as maçanetas? O ódio, por maior que se torne, ainda não perfura portas, nem abre corações fechados.
Um flashback
(O ódio que sente é visível. Bastava vê-lo na cozinha para perceber essa azia, quando, num gesto imprevisto, esmagou com desnecessária fúria a barata que se atreveu a expor-se, indignando Ana pela forma brutal como a matou.)
Durante o adágio
Ele demora a voltar, e isso faz com que eu imagine que tenha tido sucesso, encontrando a porta destrancada. Mas a impressão pode transformar-se numa hipótese errônea, sem nenhuma base a respeito do que ele possa estar fazendo nesse instante pela casa. Enquanto ele tateia, é difícil descrever esse movimento, essa doçura e essa leveza que saem dos teclados, essa delicadeza que atinge o fundo e o todo, essa melodia que soterra o espírito. A sala e a noite. Não há dúvida do que esse movimento sugere: a harmonia com o Universo, uma esperança que só a arte pode oferecer. Enquanto isso, ele deve zanzar como um zumbi.
Na sala
A esparsa luz na sala cria um ambiente misterioso. Se não fosse a música, talvez pudesse ouvir-se a respiração de Ana, entregue a um devaneio noturno, como se dormisse. Da sala, é possível perceber a sua presença em algum canto, abrindo gavetas e remexendo caixas. Toda essa movimentação, penso, pode ser também uma desculpa para justificar mais ainda a sua saída. Ele retorna de súbito, sem despertar o menor interesse dos que estão na sala.
O retorno
Com surpresa, descubro em seus olhos um fulgor urgente e recém-nascido. Seus gestos, inclusive, são mais descontrolados e há um nervosismo indisfarçável em seu corpo. Ana pede para ele trocar o disco. O seu rosto disfarça nesse instante um sorriso? As suas mãos estão trêmulas ao pegar o vinil.
No quarto
Você se conhece bem, até onde é possível dizer que alguém se conhece. Considera-se uma pessoa centrada e razoável, dono de um coração bom e tolerante, como se costuma dizer das pessoas simplórias. Você é capaz de sentir piedade tanto pelo inseto quanto por uma pessoa torturada na sua incapacidade de amar – e, num gesto de igual valor, ajudar a ambos, sem diferenciá-los. O que importa e está acima de tudo para você é a vida – a mesma que complica as pessoas, a mesma que atira as moscas contra a vidraça. Você não se sentiria de modo algum surpreso ante a possibilidade de ele tentar abrir a porta durante toda a noite (e todas as outras que se sucederem a esta). Enquanto você estiver no quarto, ele tentará uma aproximação. É um teimoso incorrigível: gosta de bater cabeça. Então você sente certa simpatia por essa tentativa desesperada e percebe, com toda a sua benevolência, que precisa ajudá-lo de alguma forma a livrar-se de sua obsessão, até que, mais consciente da inutilidade de seu sentimento, possa suprimir a ideia fixa que alimenta por você, algo semelhante a isto: “Você é a primeira pessoa que amei, quero que você seja a primeira e a última, você é a primeira pessoa que vou beijar” – e outras frases com conteúdo semelhante, ditas às pressas e passionalmente, que significavam tudo para ele e que, para você, não passavam de lugares-comuns, de clichês juvenis do amor. Mesmo quando ditas a toda velocidade no carro. Mesmo se gritadas ou sussurradas.
Uma hipótese
Se consentir, por exemplo, que ele se aproxime e toque o seu corpo, você estará sem dúvida contrariando o seu modo de pensar e agir; mas como não poderá mais evitá-lo (não pareciam seus passos ainda há pouco no corredor?) e precisa fazer urgentemente alguma coisa para libertá-lo, você decide deixá-lo que se aproxime com o objetivo didático de mostrar-lhe que ninguém ama sozinho, que o único relacionamento que você poderá ter com ele é o de amizade, mesmo que seja obrigado a sentir nojo de suas mãos, pegajosas e úmidas, mesmo que você se arrependa depois – no instante em que estiverem abraçados – mesmo que chegue o dia em que você passará a odiá-lo e sentirá, deprimido e não tão centrado assim, que a lição foi muito cara: ninguém ama por obrigação ou favor. Isto é, se você quiser experimentar esse dia e der conta dos percalços.
Na sala
Depois de trocar o disco, ele volta a sentar-se no seu lugar, cruza as pernas e fecha os olhos. No canto dos lábios, ressalta um tique nervoso? A música é uma sinfonia de Mozart e reverbera suave sobre os objetos do ambiente. Às vezes, ele parece sorrir ou é apenas uma visão falsa provocada pela ausência de luz ou pelo ângulo da visão? Ana diz: “São mais de quatro horas. Acho que vou dormir.” Desperto, ele olha para todos nós como se esperasse que cada um se levantasse e fosse embora, imitando Ana, que deixa a sala. Finalmente, ele se levanta e diz: “Eu também vou dormir” – e tenho a ligeira impressão, rápida, fugaz, esperta, de que segura discretamente uma chave.