Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]
O diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom, utilizou o termo “infodêmicos” para se referir aos propagadores de desinformações a respeito da pandemia gerada pela Covid-19[2]. Tais indivíduos, ao lerem uma notícia ou ouvirem um comunicado, buscam uma concordância informativa específica para interpretarem e compreenderem o seu conteúdo, de modo que o seu ponto de vista se torne, supostamente, o único verdadeiro. Os efeitos epistêmicos da infodemia são gravíssimos. Teorias da conspiração (origem química laboratorial do coronavírus para o extermínio mundial da população, transformação genética causada pela vacina, e tantas outras.), fake news (kit covid, “gripezinha”, termômetros infravermelhos geradores de problemas mentais etc.) e toda sorte de negacionismos (especialmente, negação da eficácia de medidas para evitar a propagação da doença: uso de máscara, higienização das mãos e de superfícies com álcool, imunização coletiva por meio da vacina) são alguns fatores do grave déficit epistêmico causado pela infodemia em grande parte da opinião pública brasileira[3].
Tendo isso em vista, considerando que vivemos um momento que poderíamos designar como “a era das fake news”, de que maneira podemos compreender, verificar e explicar informações que recebemos a respeito do combate à pandemia? Devemos seguir as orientações dos especialistas em saúde ou dos infodêmicos populistas? A filosofia hermenêutica de Paul Ricœur (1913-2005) pode contribuir para esclarecer esse problema.
Em primeiro lugar, a compreensão é uma atividade cognitiva que exige atenção e síntese conceitual, priorizando a estrutura completa da mensagem. Segundo o próprio Ricœur: “[…] a ‘empatia’, como transferência de nós mesmos para a vida psíquica de outrem, é o princípio comum a toda espécie de compreensão, directa (em um diálogo) ou indirecta (em uma leitura)” (Ricoeur, 1976, p. 85, grifo meu).
Em outras palavras, a compreensão de uma determinada mensagem, digitalizada ou falada, consiste ordinariamente no ato de colocar-se no lugar do outro. No caso que estamos analisando, este “outro” pode ser representado pelos técnicos especializados, que, antes de apresentar ao público qualquer conclusão científica, estudaram a fundo, por exemplo, a composição química e os efeitos de imunidade da vacina, ou pelo parente do “grupo da família no WhatsApp”, que colocando-se como expert virtual e replicando, talvez, uma única mensagem de um médico que alerta sobre a mudança no DNA e a implantação de um chip por meio da vacina, mostra apenas sua ingenuidade grotesca e sua ignorância científica.
Mas devemos ter “empatia” com o infodêmico? Um infodêmico deve receber a mesma atenção que um especialista? Conforme o hermeneuta francês: “[…] a compreensão, [verificação] e a explicação tendem a sobrepor-se e a transitar uma para outra” (Ricoeur, 1976, p. 84). Logo, o princípio da “empatia compreensiva” até pode ser aplicado ao infodêmico, mas este, diferentemente do especialista, não pode corresponder aos outros dois outros aspectos – verificação e explicação – do processo integral da compreensão. Por isso, o ato, por si só, de se colocar no lugar do infodêmico não é suficiente para compreender uma mensagem e compartilhá-la, pois a síntese da sua estrutura geral é que forma uma compreensão adequada.
Em segundo lugar, a respeito de como verificar a fatualidade de uma informação, é de suma importância investigar as fontes referenciais de uma mensagem, especialmente se ela se referir a um dado de natureza científica. Deve-se recorrer, principalmente, à comparação coletiva do conteúdo, ou seja, comparar os diferentes modos de sua exposição, em vários canais televisivos ou revistas jornalísticas, por exemplo. Ainda a esse respeito, há o chamado Fact Checking (checagem de fatos), recurso utilizado para a investigação de notícias suspeitas que circulam nas redes (aliás, deixamos nas referências um site que disponibiliza gratuitamente esse recurso). Além disso, um dos aspectos que facilita a inclinação do leitor ou ouvinte a concordar acriticamente com a mensagem recebida é o viés cognitivo de confirmação – prévia disposição a encontrar e valorizar ideias que confirmam a sua própria perspectiva de análise. Esse viés, ora implícito, ora explícito, é extremamente poderoso e persuasivo. Desse modo, a recorrência à comparação coletiva do conteúdo é também uma comparação crítica da informação. Uma mensagem exclusiva, apelativa e perfeitamente condizente com as minhas próprias expectativas e perspectivas de análise tem pouca chance de ser verdadeira.
Em terceiro e último lugar, referente a como explicar uma informação, seja ela procedente do conhecimento científico, seja do senso comum, é imprescindível ressaltar que a clareza didática vale mais que a estética linguística. Uma explicação compreensível é determinada de sentido e deve ter a possibilidade de ser ensinada com relativa facilidade. Explicar uma informação é captar e reproduzir fielmente, com clareza e simplicidade, a mensagem que ela porta. Essa fidelidade explicativa deve ser acompanhada com o máximo de objetividade possível, afastando-se assim de partidarismos ideológicos, para expor a veracidade dos acontecimentos. No entanto, nem sempre é isso que vemos, uma vez que o significado de um texto ou discurso, digitalizado ou enunciado, está aberto aos intérpretes e ouvintes desconhecidos, podendo ser facilmente distorcido. Porém, quando estes compreendem, verificam e explicam, fazem da mensagem uma informação que deve ser conhecida ou rejeitada.
Quando, então, uma informação deve ser compartilhada?
Podemos perceber que entre os negacionistas infodêmicos há certa “polarização integrada”, porque, ao mesmo tempo em que são identificados como propagadores de conspirações, falsidades e distorções informativas, eles também são descrentes e críticos convictos das ciências, mostrando assim que são internamente dogmáticos e externamente céticos. Em certo sentido, um gnosticismo ideológico conduz esses sujeitos à crença absurda em alguma “verdade conspiratória”, o que os faz pensar serem capazes de transformar a sociedade com essas informações, a maior parte delas obtidas sem qualquer rigor, por meio de canais do Youtube, páginas do Facebook ou, ainda, mediante mensagens populistas via WhatsApp.
Portanto, para que uma informação seja compartilhada, deve haver uma compreensão sintética e estrutural da mensagem, que suscite a verificação das fontes e a comparação informativa, resultando, por fim, em uma explicação acessível e elucidativa dos fatos. Esse método de abordagem é uma possível e mínima contribuição filosófica da hermenêutica de Ricœur para facilitar a decisão sobre o compartilhamento de notícias e combater as fake news em uma situação infodêmica.
Referências
RICOEUR, Paul. Explicação e compreensão. In: RICOEUR, Paul. Teoria da interpretação: O discurso e o excesso de significação. Trad. Artur Morão. Rio de Janeiro: Edições 70 Ltda., 1976. p. 83-99.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA – CNJ. Onde checar se é fake news. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/painel-de-checagem-de-fake-news/onde-checar/. Acesso em: 02 jul. 2021.
ZAROCOSTAS, John. Como combater um infodêmico. The Lancet. 29 fev. 2020. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)30461-X/fulltext. Acesso em 30 jun. 2021.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS – UFMG. Kit covid: o que diz a ciência? Faculdade de Medicina. 29 mar. 2021. Disponível em: https://www.medicina.ufmg.br/kit-covid-o-que-diz-a-ciencia/. Acesso em: 08 jul. 2021. LYNCH, Michael Patrick. O valor da verdade. Boston Review, 1 mar. 2021. Disponível em: http://bostonreview.net/philosophy-religion/michael-patrick-lynch-value-truth. Acesso em: 08 jul. 2021
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[2] Cf. Zarocostas, 2020.
[3] Cf. UFMG, 2021, e ver também, LYNCH, 2021.
O artigo é o terceiro da segunda edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Psicanálise, filosofia e sexualidade, de Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/24/psicanalise-filosofia-e-sexualidade/.
- O pretexto da violência, de Amanda de Oliveira Valeiro, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/31/o-pretexto-da-violencia/.