A personagem Ana Terra, da saga O Tempo e O Vento, de Érico Verissimo, dizia que a natureza era sua aliada e se fazia portadora de mensagens sobre o futuro. Ela garantia que o vento sempre soprava quando algo de importante estava prestes a ocorrer. Esta é uma das imagens mais poderosas de uma obra gigantesca que se passa, no decorrer de muitas décadas e gerações, nos pampas gaúchos, tão pródigos em ventanias. Lembrei-me dessa associação quando, neste mês de agosto famoso por seus ventos, as vidas de Tarcísio Meira e Paulo José se esvaíram como sopros, deixando os sentimentos de tristeza e orfandade em seu rastro.
Talvez fosse impossível não ligar esses dois grandes atores ao imaginário de Verissimo. Afinal, Tarcísio Meira, em um de seus papéis mais inspirados, viveu o Capitão Rodrigo Cambará na adaptação da obra do escritor gaúcho para a TV, nos anos 1980, produção dirigida por Paulo José. Foi nos vendavais de O Tempo e O Vento que os dois gigantes tiveram o seu encontro mais representativo e é agora, nesses tempos turbulentos que nos dão a impressão de estarmos no olho de um furacão, que ambos saem de cena. Os ventos não anunciaram suas partidas, mas suas mortes, ocorridas em menos de 24 horas, são expressões de desalento.
Tarcísio e Paulo eram referências incontornáveis na nossa teledramaturgia, em nosso cinema, em nosso teatro. Tarcísio tinha, certamente, o perfil mais clássico entre todos os atores que o Brasil já produziu. Era nosso Clark Gable, mas sem sua canastrice, ainda que seu porte de galã o tenha levado a provar, repetidamente, que também era um grande intérprete. As aventuras de João Coragem e seus irmãos conquistaram audiências em todo o Brasil, inclusive a masculina em uma época em que homens não assistiam novelas. Ali, ele se tornou uma espécie de herói épico do horário nobre, com muitos papeis de destaque nas tramas de Janete Clair. O mocinho com jeito um tanto selvagem e um charme irresistível.
A primeira lembrança que tenho do ator foi a da abertura de uma novela. Eu ainda não tinha 4 anos de idade, mas me recordo de uma imagem, do rosto anguloso de Tarcísio Meira na vinheta que anunciava, todas as noites, Coração Alado, com a trilha sonora cantada por Fagner. E é interessante notar que para quem conheceu o período áureo de Tarcisão, como era chamado por seus colegas, aquele desenho do perfil era inconfundível: sim, é Tarcísio ali, imponente, quase que um mito (sem as conotações negativas que esta palavra ganhou ultimamente no Brasil). A primeira novela de que me lembro para valer com Tarcísio foi Guerra dos Sexos, em que ele fazia uma dobradinha maravilhosa com Glória Menezes (mais uma de tantas) e com a dupla insuperável feita por Fernanda Montenegro e Paulo Autran.
Naquela comédia de Sílvio de Abreu já se desenhava um anti-Tarcísio, revelando um ator que não iria se contentar com os papéis heroicos, que ele até repetiria, mas que alternaria com trabalhos bem distantes de suas zonas de conforto. No cinema, encarou um dos textos mais polêmicos de Nelson Rodrigues, considerado um autor maldito. O Beijo no Asfalto revela Tarcísio lutando contra o que Tarcísio representava nas mentes dos fãs, ou seja, a de um homem machão, bem resolvido e dono da situação. Na trama, ele descobre uma atração sexual pelo próprio genro e acaba cometendo um assassinato, coroado com um beijo na boca do personagem vivido por Ney Latorraca. O maior dos galãs num beijo gay? Choque!
Tarcísio não ligou para tais estereótipos. Continuou vivendo seus heróis e anti-heróis, como o próprio Capitão Rodrigo ou o magnata inescrupuloso que se arrepende de seus pecados ao saber que vai morrer na excelente novela Roda de Fogo. Mas ele não deixaria de surpreender, sobretudo quando apareceu na pele do asqueroso e demoníaco jagunço Hermógenes, um dos personagens mais perversos de nossa literatura e o maior antagonista do romance Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa. Com um tapa-olho, imundo e feio como a morte, ele é o diabo que roda pelo sertão, habitando os pesadelos de Riobaldo e levando Diadorim ao seu triste e violento fim.
Tarcísio foi envelhecendo, os bons papeis rarearam, mas todas as vezes que lhe davam a oportunidade, ele mostrava do que era capaz. Isso aconteceu quando interpretou um inquisidor implacável e tarado em A Muralha; isso se repetiu quando encarnou o pai italiano que perde o filho na guerra e recusa a medalha que volta no lugar do ente querido, em uma cena absolutamente genial ao lado de Eva Wilma (que também nos deixou neste trágico 2021), em O Rei do Gado; e mais uma vez podemos assistir uma grande performance na composição de um coronel autoritário e chucro na primeira fase de Velho Chico. Assim, ele revelava um talento impressionante para trabalhar suas criações com seu olhar, sua verve, sua entonação de voz, até mesmo com as rugas que tomaram seu rosto de beleza clássica.
Paulo José, por sua vez, talvez tenha sido um dos atores mais carismáticos a que o público já assistiu. Mais ligado ao teatro, foi na TV que conquistou sua popularidade ainda nos anos 1970, com a novela Meu Primeiro Amor, quando integrou a dupla Shazan e Xerife, ao lado de Flavio Migliaccio (outra perda recente). Sucesso entre as crianças, ele permaneceu com sua trajetória no teatro, muitas vezes ao lado de sua companheira de vida, a atriz Dina Sfat, com quem teve três filhas. Ao mesmo tempo, já incursionava pelo cinema, com destaque para o já clássico Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, em que fez o protagonista em sua versão branca (a negra ficou com Grande Otelo) e também a mãe da personagem.
Na TV, Paulo José atuou na frente e atrás das câmeras. Nos anos 1980, foi um dos primeiros atores a se aventurar na direção – a série O Tempo e O Vento é um exemplo, assim como outros sucessos, sempre baseados em obras literárias de excelência, como Incidente em Antares, também de Érico Verissimo, e Agosto, de Rubem Fonseca. Em termos de atuação, ele deu vida, na novela Por Amor, a Orestes, um alcóolatra que tenta deixar o vício com o apoio da filha mais nova e o desprezo da filha mais velha. Um show de humanidade, ainda mais quando lembramos que naquela época o ator já sofria os sintomas do Mal de Parkinson. Uma resiliência absoluta em nome da arte, fazendo das próprias limitações físicas parte da matéria-prima para sua interpretação.
Perder Tarcísio Meira e Paulo José numa mesma semana é também o símbolo de tempos de luto e tristeza. O Brasil viu dois de seus artistas mais importantes irem embora sem que o Presidente da República ao menos lamentasse publicamente as duas mortes. É o emblema do desprezo com o qual a área artística tem sido tratada e de que os vácuos podem ser definitivos. Em sua última apresentação da peça O Camareiro, seu derradeiro trabalho no teatro, Tarcísio, travestido de seu personagem, lembra que os tempos atuais são duros e sombrios e que os atores resistem, apesar de todos os ataques. Diante de tudo isso, parece que sinto um vento soprar aqui. Algo importante deve estar prestes a acontecer. E não há de ser coisa boa.