Coautores: Caio Padovan[1] e Weiny César Freitas Pinto[2]
Quantas vezes encontramos em ensaios e artigos científicos aproximações entre a psicanálise e as obras de filósofos como Nietzsche e Schopenhauer, entre outros? De fato, Freud cita filósofos em suas obras, como também cita pesquisadores de várias outras áreas do conhecimento. Mas a questão é a seguinte: é possível extrair da psicanálise uma filosofia ou, ainda, associar a obra de Freud a uma corrente filosófica?
Para abordar essa questão, que provoca filósofos, psicanalistas e pesquisadores diversos, trataremos de um tema central da obra freudiana: a sexualidade. Ainda que, naturalmente, a obra de Freud não se resuma a isso.
Procuraremos responder à pergunta acima a partir de um clássico da teoria psicanalítica. Em Além do Princípio do Prazer, publicado em 1920, Freud evoca Platão ao abordar a origem da sexualidade, em uma daquelas citações que pode ser considerada o ponto alto das referências filosóficas nos textos freudianos, já que a menção à obra platônica faz parte da construção do argumento de Freud sobre o surgimento dos sexos[3].
Após constatar a insuficiência da biologia para explicar o surgimento da sexualidade, o criador da psicanálise recorre ao filósofo grego na seção VI de Além do Princípio do Prazer, discutindo o mito do andrógino[4] apresentado por Platão em seu célebre diálogo O Banquete, também conhecido como Simpósio, composto por volta de 380 a.C..
O diálogo platônico citado por Freud tem como tema central a natureza do amor e narra um jantar festivo que ocorre na casa do poeta trágico Agatão, no qual o anfitrião se reúne com Sócrates e outros notáveis. Após o banquete, os convidados discursam a respeito do amor, até que Aristófanes, comediógrafo famoso na Antiga Grécia, narra a sua versão sobre a origem dos sexos, afirmando que inicialmente o corpo humano teria três sexos: o masculino, o feminino e o andrógino. Os humanos, porém, desagradaram a Zeus, que, como punição, cortou-os em duas partes, condenando-os a passar a vida buscando pela sua metade perdida. O diálogo platônico segue com as exposições de Agatão e, finalmente, a de Sócrates. Em Além do Princípio do Prazer, no entanto, Freud encerra sua citação na exposição de Aristófanes a respeito do mito do andrógino.
Ora, se a sexualidade é uma questão fundamental na obra freudiana, surgem as seguintes questões: por que Freud recorreu a Platão para explicar um ponto tão importante de sua obra? Teria Freud encontrado respostas às suas perguntas na filosofia? Ou, ainda, após essa clara menção à obra do filósofo grego, podemos conceber a ideia de um Freud platônico?
A partir de tais questionamentos, leitores e comentadores precipitados poderiam rapidamente fazer aproximações entre a psicanálise e a obra de Platão. Seriam, no entanto, aproximações feitas a partir de recortes enviesados do texto, uma vez que, após a realização de uma análise textual mais rigorosa, as respostas às questões acima serão claras: não! Freud não encontrou respostas na filosofia! Tampouco era adepto ou devedor do pensamento platônico. Conhecia sim sua obra, a ponto de saber que o mito do andrógino remontava a tradições anteriores a Platão, especialmente entre os hindus na Índia antiga[5].
Vamos ao texto: em Além do Princípio do Prazer, antes de nos levar ao mito de Platão, Freud faz uma clara introdução, apontando para a necessidade de se buscar maiores informações sobre o surgimento da reprodução sexuada e sobre as pulsões sexuais em geral (Freud, 2020). Informações essas que, até então, os investigadores especializados, tais como os biólogos, por exemplo, não haviam conseguido.
Após constatar a insuficiência da ciência de sua época na explicação do surgimento da sexualidade, recorre ao mito que, segundo o próprio Freud, seria fantasioso: uma narrativa de “natureza fantástica” (Freud, 2020, p. 187).
Freud era conhecedor dos clássicos. Em seus textos, articulava com habilidade elementos humanistas interessantes e atrativos aos olhos e à atenção do leitor; contudo, é preciso deixar claro que, em Além do Princípio do Prazer, é o uso de teorias biológicas que está na base da construção de sua análise metapsicológica, elencando especialmente na seção VI do texto uma série de estudos e experiências científicas nessa área[6]. No entanto, ao se deparar com os limites do conhecimento biológico de sua época, Freud se mostrará aberto a dialogar com outras áreas do saber.
Ou seja, o fato de Freud citar Platão, tal como em outros momentos de sua obra menciona Nietzsche ou Schopenhauer, não faz dele um filósofo, nem significa que produziu os conceitos de sua teoria a partir de uma referência filosófica. Sabemos que, para além das observações clínicas que vinham se acumulando em seu trabalho, Freud sempre buscou estabelecer uma fundamentação biológica para a teoria psicanalítica.
Ao apresentar o mito platônico, Freud não procura explicar a origem da sexualidade, pelo contrário, busca demonstrar a incapacidade da biologia de explicá-la naquele momento. Em seguida, o próprio psicanalista admite o alto grau de especulação que a sua obra tomou ao adentrar em questões como a do surgimento da sexualidade (Freud, 2020) e, após fazer a menção ao mito platônico, é categórico a respeito das especulações e das aproximações filosóficas: era chegado o momento de parar.
Referências
FREUD, Sigmund. Além do princípio de prazer. Obras incompletas de Sigmund Freud. Seguido do dossiê: Para ler Além do princípio do prazer. Edição bilíngue: português/alemão. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.
PLATÃO. Diálogos: O banquete. Fédon. Sofista. Político. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
[1] Professor de Psicologia Clínica na Universidade Paul Valéry, Montpellier 3. Doutor em Psicopatologia e Psicanálise pela Université de Paris. Atua na área de história e filosofia da psicanálise. Pesquisador ligado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da PUC-PR. E-mail: caiopadovanss@gmail.com
[2] Professor do curso de Filosofia e do Programa do Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
[3] Masculino e feminino, ou aquilo que é necessário para a reprodução sexuada.
[4] Ser com ambos os sexos, que remonta a uma bissexualidade originária.
[5] Textos Upanixades, escritos cerca de 800 a.C., informação acrescida pelo próprio Freud em uma longa nota de rodapé acrescentada à segunda edição de Além do Princípio do Prazer, publicada em 1921.
[6] Freud demonstra textualmente grande interesse pelos trabalhos de A. Weismann, biólogo austríaco autor de pesquisas a respeito da duração da vida e da morte dos organismos, e publicações tais como Sobre a duração da vida, de 1882, e Sobre vida e morte, de 1892 (2020, p. 153-157). Além disso, cita as publicações do biólogo alemão Max Hartman, Morte e reprodução, de 1906, e do médico fisiologista Alex Lipschutz: Por que morremos, de 1914. Cita também os estudos do zoólogo alemão Franz Doflein: O problema da morte e da imortalidade nas plantas e nos animais, de 1919.
O artigo é o quinto da segunda edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros textos publicados:
- Psicanálise, filosofia e sexualidade, de Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/24/psicanalise-filosofia-e-sexualidade/.
- O pretexto da violência, de Amanda de Oliveira Valeiro, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/07/31/o-pretexto-da-violencia/.
- Hermenêutica e infodemia na era das fake news, de Pedro Henrique Cristaldo Silva, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/07/hermeneutica-e-infodemia-na-era-das-fake-news/.
- O lugar da pulsão de morte no homem, de Jennifer Aline Zanela, disponível em http://ermiracultura.com.br/2021/08/14/o-lugar-da-pulsao-de-morte-no-homem/.