Quando este texto for publicado não fará mais (o mesmo) sentido. A velocidade da profusão incessante das imagens inebria. O olho maquínico destitui-se do elo com a memória. Toda e qualquer questão é movida pela obsolescência programática dos stories.
Mas, ainda assim, talvez pelo tamanho do apelo imagético, alguém leia.
Convém então começar pelo começo: o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas um conjunto de relações sociais mediados por imagens (aforisma nº 4 da Sociedade do Espetáculo).
A economia política do signo galga um novo patamar no cativeiro das plataformas.
É mesmo a coxa do Lula ou é montagem? Ah, vai, no mínimo um fotoshop rolou… nada disso importa! A imagem da coxa é muito mais forte, sólida, dura e musculosa do que a própria coxa.
É inegável que a força de Lula vai muito além da sua perna. Mas a guinada dessa força em estado de forma (e forma de um corpo ideal) é algo inesperadamente novo.
Passo longe aqui de classificar o Lula e sua perna forte como fascista, que fique desde já claro. Mas é salutar (re)afirmar que o projeto nazifascista clássico e contemporâneo tem no culto ao corpo perfeito um de seus mais bem acabados pilares de sustentação. Então não é em si a imagem da perna forte do Lula que é nazifascista, mas a forma como ela circula nas redes sociais que é. Vive na reprodução da imagem no Instagram a concepção cinematográfica de Leni Riefenstahl, cineasta do nacional-socialismo, que manejou a imagem do corpo perfeito como dispositivo de efetivação da eugenia.
Imagem, perna, poder. Putin sem camisa, Lula de sunga. A força em estado de imagem do corpo. Biopolítica imagética na veia, na perna, na sunga.
Nós, os habitantes da Era do tecnokafkianismo (Morozov), lidamos com uma ingenuidade absurda como se os dados não fossem valiosas e vigorosas mercadorias. No capitalismo dadocêntrico, tudo que é sólido se transmite em estado de dados pelo ar.
A imagem nunca é o real, só tomou o lugar dele. A realidade surge no espetáculo, e o espetáculo é real, a afirmação da aparência de toda a vida humana como sua quintessência. Verdade é o que gera mais visualizações.
O fetiche da mercadoria opera por meio de agenciamentos imagéticos. A forma do corpo como força política reivindica para si e por si o valor de imagem da forma mercadoria espetacular. Agenciamentos do simbólico.
Devir presidente condicionado pelo ideário do corpo são. Santo Lula, o salvador, com corpo de deus grego. No quase novo dicionário da política brasileira, coxinha é sinônimo de reacionário, e coxudo é o Lula, a antítese semiótica do reacionário em estado de músculos. A corporeidade forte como ativação subliminar-subjetiva de um projeto de nação. Corpo são. Salvador da nação.
Aqui o meme mimetiza faces de um fascínio-fascismo.
A imagem do migrante nordestino, depois do operário sindicalizado, depois do articulador arrojado e do presidente conciliador sagaz já não é suficiente. A imagem da perna nos lança rindo, distraídos, na vala comum da ditadura do corpo perfeito. O delírio já foi inventivo. Capturado, é inventado e consumido, replica-se em cliques e compartilhamentos. Lula viaja pelo Brasil fazendo o que sabe: conciliar o país. As imagens viajam pela tela reificando na perna a mensagem subliminar: a força do nosso salvador.
O salvador da conciliação nacional até aqui tinha muitas outras qualidades, mas, na era do cativeiro das plataformas, carecia de mais: o corpo escultural. A esquerda ri, baba e reproduz a cartilha básica da eugenia: louva enquanto brinca com o corpo perfeito.
A trágica e sádica quase coincidência de reprodução espetacular do corpo robusto de um político que é reconhecido pelo combate à fome em um momento em que metade do Brasil mal come.
Nós, justo nós, que temos lutado enfaticamente contra a ditadura do corpo perfeito, de joelhos diante da imagem do joelho do Lula.
Houve um tempo em que o engajamento significava outra coisa, agora, a coxa forte agencia um engajamento imensamente maior que aquela greve de 1979, aquele estádio lotado, Lula palanque acima, operários em transe: ABC da greve. Engajamento agora é mimesis do que se pode ver e compartilhar.
Nós, há tempos, também já tínhamos chegado ao consenso de que a piada nunca é neutra. Louvar a perna forte, compartilhar a profusão infinita de memes como movimento inocente de agigantar a forma do corpo é combustível do darwinismo social na era da indústria do imaginário. O corpo perfeito foi o par perfeito da política nazifascista, agora reina no (in)consciente imagético de quem luta contra ele.
A perna de Lula no Pavilhão da Alemanha Nazista da Exposição Universal de Paris de 1937. O ideário do corpo perfeito agora mais que perfeito, porque quase de esquerda.