Na celebração da Semana Santa, resolvi relembrar as mais destacadas produções do cinema referente às diferentes versões da vida de Jesus Cristo. Como não lembrar das cenas violentas de A Paixão de Cristo (2004), dirigida por Mel Gibson, ou do estilo italianíssimo de Franco Zeffirelli em Jesus de Nazaré (1977)? Incluo ainda o épico o Rei dos Reis (1961), de Nicholas Ray, e de modo benevolente venho destacar a polêmica criação de Martin Scorsese: A Última Tentação de Cristo (1988).
Jamais encontrei motivos para homenagear Scorsese pela coragem do viés progressista visto em seu Jesus magistralmente interpretado por Wilem Defoe. A propósito, enxergo com certo desagrado qualquer interesse apelativo com fins únicos de alguém marcar posição numa espécie de contracultura dentro de qualquer segmento artístico ou acadêmico. Afinal, o que não dizer de Darren Aronofsky em Mother (2017)? Diante deste desabafo, peço desconsiderarem qualquer rótulo conservador, mas às vezes acredito que no período de Nietzsche a Michel Onfray o modismo do discurso anticristão tornou-se deveras acentuado entre certos artistas e intelectuais. Assim sendo, é óbvio concluir minha ávida espera por uma criação que eu considere mais talentosa, ao invés da mera vaidade artística ou intelectual, embora possamos raramente testemunhar momentos nos quais os dois termos possam perfeitamente conviver num mesmo lugar.
Outrossim, meu interesse agora está voltado para outra personagem, sentenciada pela Igreja Católica a se tornar por longos séculos o expoente sombrio da traição: refiro-me a Judas Iscariotes. Para os desconhecedores da Bíblia, Judas é, no livro de Lucas, apresentado como um dos 12 apóstolos, quem, de acordo com o Evangelho, traíra seu mestre entregando-o a seus captores pelo valor de 30 moedas de prata. Após este ato, o suposto traidor entrou em profundo desespero, enforcando-se numa árvore e, não bastando, teria sua alma ido parar no inferno. A obra de Scorsese promove ousadamente uma releitura desta história, dando-nos outra “verdade” sobre o comportamento da personagem – ele jamais traiu Jesus! Diferentemente da versão oficial, Judas, interpretado por Harvey Keitel, é também considerado o mais preparado dos apóstolos e, por isso, tornou-se o mais próximo do Messias.
Para além da licença poética, convém refletirmos sobre a coerência da versão do diretor americano. Desse modo, imaginemos algum amigo do qual tivéssemos a plena segurança de que seu futuro ato iria resultar num desfavorável desfecho. Não nos pareceria estranho entendermos por esse prisma que Jesus sequer disse algo ao seu discípulo no tocante aos riscos da desmedida insensatez de uma traição? Parece difícil elaborarmos outra prova mais eloquente de amor senão darmos ao amigo um prévio conselho, considerando a culpabilidade diante da nossa omissão. Como Jesus pôde expulsar demônios, mas foi incapaz de dissuadir um homem comum do pecado da traição?
Todavia, recorrendo à exegese oficial, parece apropriado admitir a linha de interpretação do interesse premeditado – portanto, tudo isso precisava de fato acontecer. Ora, mas se tudo deveria mesmo acontecer, resta-me a sensata obrigação de advogar em defesa do homem de Iscariotes. Por isso, montei minha breve linha argumentativa em favor do apóstolo, declarando-o inocente pela alegação de primeiro ter contraído pela vontade do seu Mestre a terrível missão de cumprir com os propósitos das Escrituras Sagradas. Logo, neste caso, o significado de “traição” deverá sofrer considerável alteração semântica, sendo entendido segundo a definição do psicólogo e filósofo estadunidense Lawrence Kohlberg (1927-1987) como uma ação pós-convencional, isto é: o ato realizado por Judas ter sido de um altíssimo nível de moralidade, capaz de ultrapassar o conflito entre as regras e o sistema.
Não satisfeito, trago em defesa de Judas o segundo argumento, o qual robustece a sua inocência e o seu heroísmo. Nos anos de 1970, foram descobertos numa caverna do Egito manuscritos que, depois de alguns anos, foram parar na Fundação Mecenas, na Basileia, Suíça. O documento tem pouco mais de 30 páginas de papiro, tratando-se de um antigo texto escrito em copta, provavelmente em posse no passado de uma seita cainita, surgida no começo do cristianismo.
De acordo com a divulgação da National Geographic, o texto seria na verdade outro Evangelho, de autoria do próprio Judas Iscariotes. Rotulado como um texto apócrifo (não reconhecido pela Igreja Católica), acredita-se que seja originariamente gnóstico, termo conhecido como grupo esotérico rival da Igreja, por volta do século III. Nessa versão, o apóstolo deve atender aos mandos de Jesus, a fim de levá-lo à crucificação e, desse modo, fazer valer o desejo divino da cristificação – isso torna Judas uma das peças-chave na simbologia do “drama da paixão e morte”.
Apesar de a incrível descoberta dar novas luzes ao caminho da compreensão cristã, é provável que ela se mantenha durante um longo período condenada à marginalidade dos escritos heréticos. Porém, resta a esperança de um tempo em que a ciência ou as boas histórias dos livros e do cinema nos permitam ter um outro ou novo olhar sobre os dogmas do cristianismo apresentados e defendidos pelo Vaticano. Talvez seja a forma de fazermos justiça, reconhecendo-o com um maior valor daquele que já nos é apresentado entre os apóstolos.
Muito bom!