[Coautor: Weiny César Freitas Pinto[1]]
O despertador toca, desativo o alarme e vou checar as redes sociais: “Só podia ser o comunista do Iphone. Se mude para Venezuela. Seu escurinho comunista!”. É assim que se inaugura um novo dia. Juntamente à chegada da Aurora, deusa do amanhecer na mitologia romana, que nessa ocasião parece estar vestida com um véu de Maya verde e amarelo, leio mais uma demonstração pública de intolerância dirigida a um vizinho, doutor em Filosofia. E agora? Como devo agir? Antes de tomar qualquer atitude, com uma xícara de café em mãos, começo a refletir sobre o contexto propulsor desse tipo de atitude, que, infelizmente, está cada vez mais constante em nosso cotidiano.
Enquanto degusto o café, que está mais amargo que o de costume, com o problema do atual recrudescimento da intolerância em mente surge a hipótese de que o estímulo sem rédeas à polarização política, por meio das redes sociais, é o grande motivo do crescimento desenfreado da difusão de mensagens de ódio e intolerância com que hoje nos deparamos.
Divide et impera, que significa “dividir para governar”, é o lema que o filósofo renascentista Nicolau Maquiavel ajudou a difundir por meio de sua obra O príncipe. Conforme Cavalcante (2016), a referida obra seria um manual prático para um governante se manter no poder e aumentar suas conquistas. Para tanto, qualquer método, lícito ou ilícito, moral ou imoral, poderia ser usado para atingir esse objetivo. Parece que esse lema se adapta perfeitamente aos interesses de muitos políticos brasileiros.
Batista (2020), em seu texto Há relação entre relativismo e fascismo?, utiliza o ensaio Mito do contexto (1996), de Karl Popper, e o ensaio O fascismo eterno (1998), de Umberto Eco, para discorrer sobre o relativismo e as características do fascismo. Do relativismo, cuja principal premissa é a de que o único modo possível de haver uma discussão racional é com a concordância dos participantes sobre o mesmo contexto, decorre a convicção de que para haver uma discussão frutífera de ideias, é permitido discordar de ideias secundárias ao contexto, porém nunca do próprio contexto (BATISTA, 2020). É fácil perceber essa característica no interior dos grupos polarizados de direita e esquerda que se formaram. Sobre o fascismo, suas principais características são indicadas: o nacionalismo, a obsessão por conspirações e a extrema vontade de criar inimigos.
Sabemos do amplo uso das redes sociais, que está ao alcance da palma das mãos de milhares de pessoas, em qualquer instante do dia. Seus usuários recebem, criam e compartilham informações muito facilmente, sobre os mais variados assuntos. Vejam, quantidade não significa qualidade! Em contraposição à facilidade de transmissão de informação, as redes sociais não possuem filtros que impeçam que informações falsas sejam difundidas. Como ilustração, basta nos atentarmos sobre o teor absurdo de muitas mensagens que circularam e ainda circulam nas redes sociais sobre o tema da pandemia gerada pela Covid-19. Angustia-me pensar sobre a quantidade de pessoas que, influenciadas por tanta desinformação, negligenciaram a eficácia da vacina e acabaram por perder a vida. Não são somente informações falsas que circulam nas redes. É comum nos depararmos com mensagens criminosas, como discursos de ódio contra minorias, contra negros, contra orientação sexual, difamações, calúnias, e até mesmo incentivo ao nazismo. Ou seja, muita gente, acreditando no anonimato e no direito à liberdade de expressão absoluta, acaba por difundir informações e ideias que infringem a dignidade humana.
Acabo de tomar mais um gole do café, nesse momento consigo melhor compreender o contexto oculto à mensagem intolerante que recebi pela manhã. Existiria o interesse, por parte de alguns políticos, na implementação de um regime autoritário de governo, como o fascismo? Haveria, então, uma razão para o incentivo à polarização da população brasileira? Estaria esse interesse relacionado à ampla divulgação de mensagens de incitação ao ódio, intolerância e notícias falsas? Seriam as redes sociais a ferramenta ideal para estimular essa polarização? A avalanche de mensagens que recebemos não estaria impulsionando e induzindo, de certa forma, a pensamentos relativistas no interior dos grupos polarizados? Esse relativismo, por usa vez, não seria fomentador da intolerância? E finalmente, não seria essa intolerância a raiz causal da mensagem de ódio contra o nosso doutor em Filosofia?
Deixando essas perguntas para nossa reflexão, chamo a atenção para o conceito de tolerância a partir do olhar da obra A Filosofia de Paul Ricœur em diálogo (2020). Conforme Albertini e Pereira, em Pensar a tolerância com Ricœur: alcance e limite de um conceito (2020, p. 18), o filósofo francês aponta para duas perspectivas de entendimento da tolerância, advindas da pesquisa do significado da palavra nos dicionários. Um sentido negativo, relacionado à abstenção, e outro positivo, relacionado à admissão. Sobre o sentido negativo, tolerar significa abster-se de impedir alguém de pensar ou agir de determinada maneira. Em seu sentido positivo, tolerar significa admitir que o próximo possui sua própria forma de agir e pensar. Para reforçar o entendimento desses sentidos, os autores destacam os princípios de igualdade legal e igualdade oportunidade, da teoria da justiça de John Rawls, por meio dos quais, na medida que reconhecem o direito de existir das diferenças e a proteção aos mais fracos, a tolerância caminha do sentido negativo (abstenção) para o positivo (admissão).
Convicção é a maneira particular de pensar, sentir e agir de cada indivíduo. Para Ricœur, ela, por si só, não é violenta, porém tem grande potencial de ser intolerante, muito em razão da possibilidade de misturar-se a um “princípio mau” (RICŒUR, 1995). Nesse sentido a intolerância é um “defeito de uso” da convicção, uma violência na convicção.
Conforme Albertini e Pereira (2020, p. 22-23), Ricœur propõe níveis de tolerância, sendo seu nível desejado o “consenso conflitual”. O indivíduo não aprova e tampouco desaprova o outro, até onde a tolerância deixa de ser passiva para ser ativa. No entanto, o filósofo alerta para a erosão da tolerância. A erosão da tolerância coloca em risco as próprias convicções, chegando até mesmo à indiferença. Essa indiferença é desaprovada por Ricœur. Não se deve tolerar o intolerável. Para ele, o respeito ao próximo, principalmente ao mais frágil, é onde se encontra a fronteira entre o tolerável e o intolerável.
Para evitar cair na armadilha da indiferença, Ricœur propõe o reconhecimento entre nossos pares, por meio do amor, do direito e da estima social, em substituição à intolerância radical. Dessa forma, com o reconhecer ou tolerar, se admite que algo ou alguém seja o que/quem é. Quando o reconhecimento mútuo acontece, não existem vencedores ou perdedores, todos saem ganhando (ALBERTINI; PEREIRA, 2020, p. 27). Portanto, o reconhecimento é a arma letal contra as diversas formas de intolerância.
Nesse momento vou checar as redes sociais. Na tela, muitas mensagens de apoio àquela mensagem de intolerância. Um sentimento de angústia emerge simultaneamente ao último gole do meu café, que, com o gosto amargo e já frio, desce por minha garganta de maneira intragável. Surge então a ideia de encaminhar este texto para a reflexão das pessoas e, com ela, a dúvida: será que as pessoas estão dispostas a refletir sobre a necessidade do reconhecimento mútuo, como propõe Ricœur ou o relativismo e a intolerância, fomentados pela polarização política nas redes sociais, sairão vitoriosos?
Referências
ALBERTINI, R. Z.; PEREIRA, R. A. B. Pensar a tolerância com Ricœur: alcance e limite de um conceito. In: PINTO, W. C. F. ; ALBERTINI, R. Z. ; SOUZA, R. A. de (Org.). A Filosofia de Paul Ricœur em diálogo. Porto Alegre: Editora Fi, 2020.
BATISTA, José Renato. Há relação entre o relativismo e fascismo? Ermira Cultura, ideias e redemoinhos, 19 dez. 2020. Disponível em: <http://ermiracultura.com.br/2020/12/19/ha-relacao-entre-relativismo-e-fascismo>. Acesso em: 13 jun. 2022.
CAVALCANTE, Andrey. Dividir para governar. Gente de Opinião, 26 fev. 2016. Disponível em: <http://gentedeopiniao.com.br/opiniao/dividir-para-governar>. Acesso em: 13 jun. 2022.
PINTO, W. C. F. ; ALBERTINI, R. Z. ; SOUZA, R. A. de (Org.). A Filosofia de Paul Ricœur em diálogo. Porto Alegre: Editora Fi, 2020.
RICŒUR, Paul. Tolerância, intolerância, intolerável. In: RICŒUR, Paul. Leituras 1. Em torno ao político. São Paulo: Loyola, 1995.
[1] Professor do curso de Filosofia e da Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo é o nono da quarta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- Atenção! A sociedade contemporânea e a cultura do déficit de atenção, de Rafael Lopes Batista, Paula Mariana Rech e Marsiel Pacífico, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/06/atencao-a-sociedade-contemporanea-e-a-cultura-do-deficit-de-atencao/
- A gratidão pela transmissão: uma homenagem ao professor Marcelo Fabri, de Vítor Hugo dos Reis Costa, em http://ermiracultura.com.br/2022/08/13/a-gratidao-pela-transmissao-um-agradecimento-ao-professor-marcelo-fabri/.
- Epistemologia e política: relação necessária e (impossível)?, de Alberto Mesaque Martins e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/20/epistemologia-e-politica-relacao-necessaria-e-impossivel/.
- Há filosofia nos recortes das redes sociais?, de Guilherme Baís do Valle Pereira e Vítor Hugo dos Reis Costa, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/08/27/ha-filosofia-nos-recortes-das-redes-sociais/.
- Sou uma fraude? Conhecendo o Fenômeno do Impostor, de Renata Tereza dos Passos Costa, Weiny César Freitas Pinto e Ana Karla Silva Soares, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/03/sou-uma-fraude-conhecendo-o-fenomeno-do-impostor/.
- A falta da falta, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/10/a-falta-da-falta/.
- Gradiva e a busca do ideal feminino, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/17/gradiva-e-a-busca-do-ideal-feminino/.
- Existe separação entre conhecimento e política?, de Jonathan Postaue Marques, Vitor Hugo dos Reis Costa e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2022/09/24/existe-separacao-entre-conhecimento-e-politica/.
Contexto é atual. Não podemos esquecer o que está em jogo, a nossa liberdade é se estamos em guerra contra esta nova ordem mundial, pregar a intelorancua contra aqueles que querem levar o país para o fundo do poço, se faz necessário.