[Coautor: Weiny César Freitas Pinto][1]
Cada período da civilização é caracterizado por determinados aspectos, sejam eles políticos ou econômicos, sejam eles culturais ou filosóficos. Esses aspectos são fatores decisivos para a conceituação da noção de homem num determinado período, pois as peculiaridades das épocas moldam homens compatíveis ao seu tempo. Se é assim, podemos interrogar: o que é o contemporâneo? Como poderíamos caracterizar e entender melhor o nosso tempo, este tempo no qual vivemos? Qual é a personificação da contemporaneidade?
O período medieval, que nasce em meados do século V e se encerra no século XV, foi um momento de opacidade no mundo ocidental. Controvérsias à parte, uma instituição religiosa regia as leis, costumes e cultura desse tempo. Pensa-se esse período personificado na figura do homem religioso. A rígida cultura de costumes que cerca esse homem o impossibilita de ir além de seu cotidiano resumido a ritos litúrgicos e contemplação da paisagem do campo, seu lugar de trabalho. Assim, tal indivíduo é dividido entre o trabalho e a catedral. Ele lança olhares para o alto, porém, não o faz como um atento observador dos fenômenos celestes, ao contrário, em seu vagaroso movimento de olhar para cima, está a expectativa da providência divina.
O homem medieval é imerso em seu cotidiano, tal como um mergulhador acostumado às profundezas marítimas. Para o mergulhador, após o mergulho, emergir à superfície exige um processo de recomposição do corpo, podendo demorar horas, dias ou até semanas. Semelhantemente é com aquele que está imerso nas profundezas de seu tempo, depois de emergir à superfície, precisa se readaptar à nova atmosfera, retirar o “velho traje” e reabilitar-se. Um novo homem surge, um homem adaptado a uma nova atmosfera, a um novo tempo.
Dessa forma surge o período moderno, que paira no semblante desse novo homem. Ele não se esqueceu do período em que estava submerso, portanto, ainda é religioso, mas agora associa sua crença ao deslumbre das ciências naturais. O homem moderno é explorador das estrelas, busca compreender o universo acima de si. Seu olhar não mais espera unicamente a providência divina, mas busca a contemplação do céu, associando a beleza e o anseio exploratório como partes de um grande quebra-cabeça formado por seu criador. A resolução do quebra-cabeça é o reconhecimento da grandiosidade de seu deus.
Esse novo homem dedica-se às ciências naturais, à política e à religião. Este homem saiu das profundezas do mundo medieval e agora percorre e se estabelece nos estudos das ciências. É explorador das estrelas, dos mares, como também de si mesmo; ele explora o íntimo da sua consciência e, descobrindo o funcionamento da mente, procura conhecer os limites da razão. Diferente de seu antecessor, o homem moderno é curioso e atento aos detalhes da natureza que o circunda. O retorno à filosofia clássica e os esforços para entender a natureza por meio das ciências empíricas foram duas características importantes para o novo empreendimento exploratório do homem moderno. Como resultado, vê-se o desenvolvimento filosófico-científico da modernidade. O debate entre empiristas e racionalistas, físicos e filósofos ilustra a marca desse período. Homens como Kepler, Galileu, Newton, Leibniz, Descartes, Locke e Kant são as grandes personificações da era moderna.
Mas quando se trata da contemporaneidade, qual a sua personificação? Como retratar o contemporâneo que se desenvolve a cada instante do presente? O filósofo italiano Giorgio Agamben (1942) contempla integralmente esses questionamentos em seu ensaio O que é o contemporâneo? (2009). Em sua primeira consideração, Agamben cita Nietzsche, afirmando que o contemporâneo é o intempestivo. As características principais do homem contemporâneo são expressas da seguinte maneira:
Pertence verdadeiramente ao seu tempo, é verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e apreender o seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 59).
Dessa forma, o homem que representa o contemporâneo é incongruente com o seu próprio tempo, não faz parte do desenrolar instantâneo da atualidade. Entretanto, é somente assim que ele se torna capaz de incorporar totalmente o andamento do presente, pois ele é “aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provêm de seu tempo” (AGAMBEN, 2009, p. 65).
Se os modernos sonhavam com as estrelas quando seus olhos estavam cientificamente atentos aos céus, o homem contemporâneo é ainda mais perspicaz: domina a técnica, e pode inclusive sobrevoar pelos céus e pelo universo. Ele chegou aos lugares tão almejados pelos modernos, e agora, mesmo diante de tamanho domínio, sente a necessidade de voltar seu olhar para o cotidiano, seu presente. Ele o faz não com vislumbre, mas com tormento. O sentimento de tormento que toma conta do homem contemporâneo diz respeito à perda de sua identidade.
Na busca por ser autêntico, o contemporâneo realiza o movimento de deslocar-se, “dissociar-se” de seu tempo, trajando-se de acordo com cada nova ocasião. O homem contemporâneo dissocia-se e retorna com novos trajes e nova máscara. Torna-se disforme nas vestimentas, nos costumes e nas pretensões. Assume nova aparência. Encara a escuridão do seu tempo assim como se afronta no espelho d’água, porém, isso não consiste em uma atitude permanente. Ao menor feixe de luz que ilumina e faz vê-lo a si mesmo por meio do reflexo, percebe que seu traje e máscara não cabem mais em si. É o momento de se dissociar e trajar-se outra vez.
Logo, o que ocorre no contemporâneo é uma constante mudança, excessivas revoluções de si mesmo. Eis o incessante movimento: dissociar, trajar, encarar a escuridão, dissociar novamente… O contemporâneo é o homem que busca por si-mesmo, mas não se encontra, não se conhece. Ele aperfeiçoou o potencial de ser mutável, mas é superficial e despersonalizado. A filosofia lhe serve como uma ferramenta ambígua: é o machado que derruba, corta as raízes, amputa os membros e, ao mesmo tempo, é a bandagem que estanca os ferimentos.
Portanto, o homem contemporâneo progrediu no domínio das técnicas industriais, na tecnologia e nas ciências como um todo, mas ele mesmo foi a causa de seu declínio. Turbulentas revoluções do pensamento minaram a capacidade do contemporâneo de conhecer a si mesmo, tornando-o assim um indivíduo de complexa personificação. A metamorfose é o que o configura, a ambiguidade e os extremos o que o constituem. Ele é disforme e “histriônico”, anacrônico e atual, desfigurado e desarmônico. A busca em ser si-mesmo embala os movimentos dessa dança e seus passos se harmonizam com a orquestra que executa seu último réquiem.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó – SC: Argos, 2009.
[1] Professor do Curso de Filosofia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul. Atua na área de pesquisa em história da filosofia moderna e contemporânea, com ênfase em filosofia da psicanálise e epistemologia das ciências humanas. E-mail: weiny.freitas@ufms.br
O artigo inaugura a quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios.