[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
A voz e o verso
A solidão da voz
É a sós
que o cantor
burila a voz.
Solidão do poeta
Quando você me encontrar
sozinho
saiba que estou
em boa companhia.
Crítica
Você me dá bola preta
eu esqueço
você dá o que tem
não o que mereço.
Mais crítica
O rancor pesa…
que bobagem
carregar pedra
na bagagem.
Relações
O canto está para a fala
como a dança
para o andar.
Palco
No palco
tudo é exposto:
a alma
a voz
o rosto.
Público
A multidão
é cada pessoa só
e ela liberta o aplauso
ou aperta
o nó.
Cantar
Se você quer saber,
cantar é mais que se exprimir
é se espremer.
O verso
Não tenho
que explicar nada.
Ou você sabe
e não precisaria
ou não sabe
e não adiantaria.
A voz
Sou feliz:
eu canto
o que o poeta
diz.
Só uma palavra me devora (2000)
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[2]
Louça fina
Todo amor carrega
O medo de quebrar
Como uma louça fina
No mármore do olhar
E faz quem ama ser
Um gesto incompleto
Que inquietamente paira
Entre o chão e o teto
Por isso é melhor
Deixar o amor correr
Em paz dentro de nós
Como se fosse rio
Tocar em nossos olhos
Com seus dedos de brilho
E nos fazer queimar
Ou tiritar de frio.
Só uma palavra me devora (2000)
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[3]
Jura secreta
Só uma coisa me entristece
o beijo de amor que não roubei
a jura secreta que não fiz
a briga de amor que não causei.
Nada do que posso me alucina
tanto quanto o que não fiz
nada do que quero me suprime
do que por não saber inda não quis.
Só uma palavra me devora
aquela que meu coração não diz
só o que me cega, o que me faz infeliz
é o brilho do olhar que não sofri.
Só uma palavra me devora (2000)
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[4]
Brisa do mar
Brisa do mar
confidente do meu coração
me sinto capaz
de uma nova ilusão.
Que também passará
como ondas na beira do cais
juras, promessas, canções
mas por onde andarás?
Pra ser feliz, não há uma lei
não há porém sempre é bom
viver a vida atento ao que diz
no fundo do peito o seu coração.
E também entender
os segredos que ele ensinar
segredos sutis
como a brisa do mar.
Só uma palavra me devora (2000)
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[5]
As rosas têm pressa
As rosas têm pressa
querem explodir
pois é breve
a glória da flor.
O colibri também sabe
que começa a minar
de leve,
no fundo do cálice perfumado,
o néctar de seus dias.
Se as plantas, os bichos,
os ventos, as águas,
se tudo sabe,
por que em meu peito
ainda cabe
o agasalho
da melancolia?
Se já tenho as milhagens
da fria viagem,
se já é setembro no Rio
enfim, caralho!
Por que o inverno
insiste em mim
com seus dedos crispados
de arrepios?
O gosto dos dias (2014)
Perfil
Abel Ferreira da Silva nasceu em Cabo Frio (RJ) no dia 28 de fevereiro de 1945. É romancista, contista, poeta e letrista. Em 1969, formou-se em Letras na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde mais tarde tornar-se-ia professor de Literatura Brasileira. Na década de 1970, deu aulas na PUC-Rio. No jornal Opinião, foi editor de cultura. Em 1985, integrou a diretoria da União Brasileira de Compositores (UBC). Fez parte do conselho editorial da revista Pauta, editada pela mesma entidade. Publicou os seguintes livros: O afogado (romance, 1971), Açougue das almas (contos, 1974), Asas (poemas, 1975), Mundo delirante (poemas, 1990), Só uma palavra me devora (poemas reunidos e inéditos, 2000), Berro em surdina (poemas, 2005), O gosto dos dias (poemas, 2014), Fôlego (poemas, 2018), PoemAteu (poemas, 2021), O caderno vermelho da manhã (poemas, 2021), entre outros títulos. Sua notoriedade destaca-se, entretanto, como letrista, cuja parceria musical inclui nomes como Sueli Costa, João Bosco, Roberto Menescal, João do Vale, Moraes Moreira, João Donato, Fagner, Dominguinhos e outros compositores.