[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
zéfiro
outra vez improviso um
alinhavo embrenhada em meio ao
bambuzal guiada pelo esfuzio das
cigarras. os pés afundados
naquele chão areento. constelado de
formigas e liquens de outras eras
as palavras me escapam feito
tainhas-de-boca-grande
Balões vítreos (2022)
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segredo
isto é quase luz
porque a luz não sabe
que se chama: luz
ela atende por tantos
outros nomes: azuláceo
vivaz bendenguê piano aquático
pingo de chuva gameleira
e até embarcação
basta chamá-la sussurrando
baixinho: quebra-mar
ventarola goivo ventilador
ou mudando o tom e desde
então vocifero treva imensa
e ainda assim ela me atende
bastando escutar a sua música
e a língua me fere de
levezas brincando com o
cochicho da brisa com o varal
basta chamá-la de mansinho
que o temor desliza entre
seixos escorregadios até que
a fulgência do riso se
espraie até que o acaso
grite: silêncio! Mas
continuo a chamá-la
bem baixinho em tom
quase inaudível: é quando
lânguida ela se espraia
Balões vítreos (2022)
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[3]
videira
escrevo porque no interior das seriguelas
resmungam buganvílias escrevo
enquanto as noites das sucuris avançam
no íntimo dos dias incrédulos acídulos
lancinantes escrevo porque longe dos
ossos dissolvo o veneno das manhãs
em conchinhas do mar escrevo enquanto
entoo com fervor uma ária lusitana
em meio às águas caudalosas do
chuveiro respirando o vapor úmido
sedenta daquela noite de amor
na sala de banho turco em que
exalavas almíscar e hortelã
os ventos sobre as jangadas
vêm avisar que chegou a hora
veja que a bacia d’água entornou
encharcando a fibra do dendê
veja que anoitece só que por dentro
veja que o sabre não corta o verão
Balões vítreos (2022)
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[4]
inutilidade
o luar avança sobre a relva
pressinto o pulso das palavras lançando-me
como só os camicases se lançam ao sabor das correntes
ultramarinas enquanto penso na resposta para o enigma
soprado pelo mistral: e se em vez de escrever com
palavras eu escrevesse com rajadas de vento?
mas isto não é cítara, Antônia, é antes
sonhar acordada, ouça bem o cântico das romãs maduras
e depois morda a sua polpa suculenta até sorver
todo o seu sabor e fartar-se de doçura
ou então, para que servem as palavras, se não
para lambuzar-se de todo tipo de delícias
e delírios inventados?
orvalho de manhã cedinho encharcando a terra queimada
ou aquela xícara rachada que você trouxe com tanto zelo
de Fira porque lembrava o chá verde diante do vulcão
inebriada de azuis em meio ao arco do Egeu
com seus aquedutos mergulhados em lugar algum
para quê, senão para ao dizer: quartzo
sentir o zumbido das abelhas na ponta da língua?
e tremer ao timbre da tuba do faraó enquanto o verão
viceja no espelho das águas e cantas a plenos pulmões
meu fado predileto, afiado em agulha de vitrola
cantarolando ao sabor dos caudais do mundo
pagão e dos teus desejos mais inconfessáveis
se não, para que servem as palavras?
Balões vítreos (2022)
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[5]
Lorca e os vendavais
amor de minhas entranhas doce voragem
em vão espero qualquer vestígio de palavra escrita
e penso em turbilhões turvados de afetos inomináveis
e se vivo sem mim é para melhor perder-te
no ar vaguei inerme. o rochedo nem crepita
nem conhece a sombra nem a ressuscita
coração inflamado mergulhado em devaneios
o fel gelado imiscuído aos teus rodeios
porém eu te sorvi. rasguei-me as veias
banhei-me em teus enganos viços e vícios
em duelo de tormentas eu me perdi
esvaziada de palavras a minha loucura
permita-me viver tua face serena oh noite d’alma
numinosa e sempre e cada vez mais escura
Balões vítreos (2022)
Perfil
Lucíola Freitas de Macêdo nasceu em Fortaleza (CE) e mora em Belo Horizonte. É psicanalista e poeta. Viveu em Salvador, Brasília e Ghirlarza, na Sardenha. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial de Psicanálise, é mestre em Filosofia e doutora em Psicanálise pela Universidade Federal de Belo Horizonte (UFMG). Realizou estudos de pós-doutorado na Pontíficia Universidade Católica de Minas Gerais (2017). Como poeta, publicou Soante (Scriptum, 2013) e Balões vítreos (Quixote+DO, 2022), além de Primo Levi, a escrita do trauma (Subversos, 2014), livro finalista do Prêmio Jabuti 2015. Publicou ainda artigos em coletâneas que tratam de sua experiência clínica, epistêmica e institucional. Dirigiu a coleção de psicanálise Estudos Clínicos, editada pela Scriptum. Segundo o escritor, tradutor e professor Lawrence Flores Pereira, em posfácio a Balões vítreos, os poemas contidos nesse livro são vislumbres do sensório que perpassa a lembrança, ou seja, uma poesia metonímica, onde tudo desfalece diante das imagens. E arremata: “O livro labiríntico de Lucíola é quase o registro de um olhar que combina ironia e a fruição da vida, prazer, delicadeza”.