“Eu não consigo ler bula de remédios!”
Foi isso o que a mulher anunciou para o delegado, e o escrivão anotou a frase. Mais curioso que impressionado, o agente repetiu a pergunta:
“Minha senhora, qual é o seu problema com as bulas de remédio ou, dizendo de outro modo, qual é a sua queixa?”
Após esse circunlóquio estiloso e didático, que deu início naquela manhã às atividades na delegacia, a mulher respondeu, em tom lamentoso:
“Toda vez que leio bula de remédio, eu me sinto um lixo da indústria farmacêutica, uma pessoa ignorante, totalmente desprezível…”
Não era uma manhã ruim, nem prometia depois ser um dia muito bom. Era só uma manhã na qual, em certo momento, alguém entrou na delegacia e bradou:
“Eu não consigo ler bula de remédios.”
Foi assim, nesse momento, que o delegado Xavier, após se acomodar à mesa, ouviu a mulher dizer a frase que, de algum modo, despertara-lhe interesse, se considerarmos que, na hora em que o expediente iniciava-se, ele se alegrava por não ter um caso barra-pesada sentado em seu colo.
Agora acomodado em sua cadeira, ao examinar a mulher que se postava à sua frente, vestida numa roupinha simples, os cabelos mal penteados, ele perguntou o seu nome, na tentativa de começar um diálogo que fizesse sentido.
A mulher fez um muxoxo e, em seguida, alterou-se:
“O meu nome? Que bosta é essa? Estou aqui para fazer uma queixa ─ não para apresentar a minha certidão de nascimento!”
Com essa reação imprevisível, o delegado arregalou os olhos e encolheu-se, atordoado.
Nesse cenário que tomava conta de sua sala, sentiu que a sua manhã começava a azedar. Quem era aquela mulher para impor procedimentos em seu distrito? Como o café matinal ainda não tinha estragado o seu estômago, ele ainda conseguia manter um razoável humor.
“Então, deixa eu ver se entendi direito: a senhora veio à minha delegacia para fazer uma queixa contra as bulas de remédio? É isso mesmo?”
A mulher agora abriu um sorrisão:
“Até que enfim! Eu pensava que o senhor fosse burro. Sim, é isso mesmo: eu vim aqui prestar queixa contra as bulas de remédio! O doutor vai registrá-la?”
Em face da convicção e da veemência da mulher, o agente da lei, com uma expressão que não escondia enfado nem surpresa, exclamou, tentando disfarçar o seu sarcasmo:
“Madame, sou todo ouvidos!”
A mulher sossegou a sua fisionomia e desfiou o seu sofrimento:
“As bulas de remédio, doutor, estão acabando com os meus nervos ─ eu não entendo nada do que leio! Uma, duas vezes, não entendo nadica de nada.”
O delegado não deixou de rir e fez um gesto para o escrivão interromper a digitação.
“Quer dizer então que a senhora é contra as bulas…” – e só não gargalhou porque se conteve.
A mulher esbugalhou-se, os olhos brilhando nas órbitas, e, nesse momento, pensou que tinha uma ocorrência e uma causa para processar a indústria farmacêutica, o conselho de farmácia, a Anvisa, a drogaria da esquina, o escambau… Quem sabe ─ pensou, ingenuamente ─, ela não acabara de ganhar um aliado?
Naquela salinha mal arejada de uma manhã que começara muito esquisita, o delegado colocou a mão na cabeça, fechou os olhos por um momento e lembrou que tinha uma consulta com o gastroenterologista no final da tarde.
A jornada prometia, e lhe ocorreu que ele também – oh, ele também! – não entendia a linguagem técnica das bulas, salvo as recomendações gerais e advertências. Como um autômato, engole os fármacos todos os dias religiosamente, retirando-os, um por um, do envelope de alumínio que fica abrigado dentro de uma caixinha de papel às vezes atraente.
Surpreendente e bem humorado.
Muito bom. Me sentí identificada. Rsssss