[Curadoria de Luís Araujo Pereira]
[1]
Queda
Negro crepúsculo mergulhou em meu avesso
e na goela de minhas tempestades
o pó de meus céus de vidro veio ao chão.
O tempo? Findo; só meu silêncio é o pêndulo
– compasso de minhas contradições.
Desenhei com cuidada distância
no olho fechado do tempo meu esperar de nada
mas mesmo para o quase nenhum esperar de nada
só haverá a esterilidade muda das poças d’água.
Fui castigada com a impossibilidade de meus voos
e da antiga competência de minhas asas, nada.
Mas não há revolta. Fico então resgatada
com meu prazer amargo de existir não existindo
– tudo é remorso.
Espelho provisório (1970)
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[2]
Proibido proibido
Tempo
horrível tempo
em que um centauro esplêndido me passeia
e acorda em mim azul azul
como o espelho azul dói entre nuvens
nuvens no azul de alguma tarde.
Invento um rio que não para dentro do seu sangue
e dentro dele estarei (nem que não queira).
Isso destrói como uma garra
que fecha e abre dentro da fechada carne
mas que fazer senão estar acordada na desordem
quando não se é mais que fera fera fera.
Centauro, há coisas que não se destroem.
És uma destas.
Espelho provisório (1970)
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[3]
Nome I
Dar às coisas outro nome
que não o vosso, amor, não pude.
Nem pude ser mais doce e sim mais rude
por conta das lamentações mais ásperas,
por causa do agravo que pensei ser vosso.
Amor era o nome de tudo, estava em tudo,
era o nome do macho cheirando a esterco,
a frutos passados e a raízes raras.
De posse da intimidade da água
e da intimidade da terra,
a animais vorazes é a que sabíamos.
Amor é com que me deito e deixo montar
minhas coxas em forma de forquilha e onde
amor abre caminho pelas minhas águas.
Magma (1982)
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[4]
Tamanduá
Cada dia a língua
do desejo reinventa
cupins e formigas.
Anima animalis (1996)
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[5]
Ode a um etrusco
Bom é reconhecer-te após milênios
ou bem mais, homem, companheiro,
é que me reconheças como a um bicho
igual pelo cheiro, pelo jeito, pelos gestos,
pelo gosto de velar animaizinhos
acabados de nascer, de contar
juntos nossas origens tão distantes.
Sei que te sei pelo que sabes da Mulher.
Em que século, milênio, encontramos
esse mesmo desenho de olho, ossaturas
orientais, a nós tão comuns?
Rimos juntos mas depois na água
eis nos tornarmos sérios, graves:
desceu uma veladura sobre teus olhos,
algo sombrio e antigo no que olhavas,
que não entendendo, achei de compreender.
Nem nos tocamos, apenas de hálitos
bem próximos, quieto fogo circundando
aqueles que se reconhecem pelo olhar,
velado magma ou coisa que o valha.
Nessa noite, se tens mulher, nela entraste
melhor que nunca porque era em mim
que adentravas.
Repertório selvagem (1998)
- Olga Savary nasceu em Belém (PA), no dia 21 de maio de 1933, e morreu, aos 86 anos, na cidade de Teresópolis (RJ), em 15 de maio de 2020, vitimada pela Covid-19. Jornalista, poeta, contista e tradutora, foi presidente do Sindicato de Escritores do Estado do Rio de Janeiro. Traduziu do espanhol mais de 40 obras de autores como Borges, Cortázar, Carlos Fuentes, Lorca, Neruda, Octavio Paz, Mario Vargas Llosa e Bashô, entre outros. Em 1994, ganhou o Prêmio Jabuti de Tradução pelo livro Como água para chocolate, da mexicana Laura Esquivel. Colaborou com vários jornais e revistas, do Brasil e do exterior. Participou da fundação do jornal O Pasquim. Foi casada com o cartunista Jaguar. Com Magma, tornou-se a primeira escritora brasileira a escrever um livro de poemas eróticos. Na sua trajetória poética, destacam-se os seguintes livros: Espelho provisório (1970, Prêmio Jabuti), Sumidouro (1977, prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte), Altaonda (1979), Magma (1982), Natureza viva (1982), Hai-kais (1986), Linha de água (1987), Berço esplêndido (1987), Retratos (1989), Rudá (1994), Éden Hades (1996), Morte de Moema (1996) e Anima animales (1996). O seu único livro de prosa, intitulado O olhar dourado do abismo, foi publicado em 1997. Repertório selvagem (1947-1998), com prefácio de Antonio Olinto e fortuna crítica, reúne 12 livros de poemas e foi publicado em 1998. Em 2021, a Todavia lançou Coração selvagem, uma ampla reunião de sua obra, com organização de Laura Erber, que assina um esclarecedor posfácio a respeito dos meandros da poética da autora.