Já faz bastante tempo, da época em que eu ainda era editora de cultura do jornal O Popular. O episódio ocorreu durante uma viagem de trabalho, no ano de 2005 ou 2006. Em um intervalo das atividades para tomar uma cervejinha, um colega de São Paulo, em meio a uma conversa animada junto a um grupo de jornalistas do qual eu – a única mulher presente – fazia parte, contou aos risos que, em parceria com um amigo, estava empenhado em seguir à risca o seguinte “projeto”: traçar todas as minas mais bonitas e descoladas da Vila Madalena, o badalado bairro paulistano, as quais estavam sendo identificadas por ambos em um “mapeamento” prévio. Respondi com um sorrisinho amarelo à brincadeira infeliz do coleguinha, mas não pude deixar de ficar pensando em quantas garotas poderiam se encaixar nos critérios sexuais, ao que tudo indicava bem exigentes, daquele rapaz metido a garanhão e que, mesmo fazendo uma blague, parecia tão autoconfiante na sua imaginária capacidade irresistível de sedução.
A recordação dessa história idiota e sem dúvida vulgar me veio à mente diante da mais recente polêmica das redes sociais, envolvendo figuras conhecidas do meio literário da capital paulista. Panelas literárias são o que são, tanto as provincianas de cá quanto as aparentemente mais cosmopolitas de lá: sempre cozinhando um caldo de futricas, mesquinharias, vaidades, compadrios. Mas o fato é que o caso envolvendo a jornalista e escritora Vanessa Barbara, o seu ex-marido André Conti, um dos sócios da Editora Todavia, e um grupo de renomados escritores e intelectuais de São Paulo extrapola as meras intrigas dessas panelinhas, evidenciando mais uma vez que o sentimento de desprezo pelas mulheres independe de ideologia, sendo democraticamente compartilhado por reacionários até os supostamente mais esclarecidos e progressistas. E se evoco aqui o episódio que testemunhei do coleguinha com complexo de Don Juan é porque ele, à época um jovem jornalista com ambições literárias e que depois se destacou no cenário nacional, tem o exato perfil dos personagens envolvidos no drama vivido por Vanessa.
Para quem ainda não se inteirou da história, um resumo: na semana anterior, o podcast Rádio Novelo levou ao ar o episódio CPF na nota, em que a escritora Vanessa Barbara – sem citar explicitamente o nome dos envolvidos, embora a maioria seja bem conhecida, ao menos do público leitor – rememora o término do seu casamento, ocorrido há 14 anos, explicitando a violência psicológica e emocional que sofreu durante os cinco anos de convívio com o editor André Conti. Vanessa traz à tona as mentiras e traições do ex, mas a infidelidade conjugal não é a questão mais relevante da sua narrativa. O que faz do relato algo tão chocante – e aí certamente está a razão de ter causado tamanha comoção – é a revelação do modo pérfido como Conti expunha detalhes da sua relação com Vanessa, vangloriando-se das manobras para enganá-la e manipulá-la, em mensagens endereçadas para uma lista de e-mail compartilhada por outros 14 parças do meio editorial e literário paulistano.
O propósito desse “cenáculo”, ao que tudo indica, era mesmo trocar confidências e impressões sobre o tema “mulheres”, em um ambiente intoxicado pelo machismo e pela misoginia, em que ficantes, namoradas, amantes e esposas tinham a sua intimidade devassada sem nenhum pudor. O que torna tudo ainda mais sórdido é que os amigos de Conti participantes do grupo eram também bem próximos de Vanessa – gente da sua confiança, do seu círculo de amizades, com quem ela trabalhou ou trabalhava, um deles tendo sido, inclusive, coautor do primeiro romance publicado pela escritora.
Não foram poucas as críticas a Vanessa pela forma como ela tornou público o assunto, apesar de já ter o abordado no campo da ficção no livro Operação impensável, de 2015. Por que trazer à tona um caso ocorrido há 14 anos? Por que publicizar um acontecimento da vida privada, que deveria interessar apenas a quem foi realmente afetado? Por que, afinal, fazer barulho em torno da conversa suja de um bando de machos, algo corriqueiro em qualquer vestiário masculino ou mesa de bar deste país? No entanto, por mais “trivial” que essa história pareça ser – embora seja preciso sempre reiterar que a alegada defesa da privacidade envolvendo assuntos conjugais não raro serve de instrumento para calar as vítimas de violência doméstica –, o que a torna tão emblemática é justamente o fato de ter sido contada.
Ouvi o podcast CPF na nota como se Vanessa narrasse um conto de suspense, daqueles que nos deixam ansiosos quanto a seu desfecho. No início da gravação, já surge um prenúncio do que virá: a autora relata como o seu marido e os amigos da famigerada lista de e-mails se divertiram e gargalharam e contaram piadas por conta do “rodeio das gordas”, um lamentável e grotesco episódio ocorrido no interior de São Paulo em 2010, quando estudantes obesas foram agarradas e “montadas” por um grupo de alunos da mesma universidade. Na parte final do podcast, Vanessa, após descrever o seu cotidiano de humilhações impostas pelo parceiro, detalha como teve enfim acesso às mensagens do grupo dos “nobres cavalheiros” das letras. Embora a autora não entre em detalhes sobre o conteúdo delas, é impactante ouvi-la contar como foi esse momento, quando descobriu que a forma como era tratada por esse tribunal masculino – ela e as demais mulheres com quem esses 15 homens se relacionavam ou haviam se relacionado, acrescente-se – não se diferia em nada da maneira como eles se referiam às pobres alunas expostas à execração pública no tal rodeio misógino e gordofóbico: com deboche, com crueldade, com maldade e, sim, com violência.
Hannah Arendt costumava citar uma passagem da autora dinamarquesa Karen Blixen em que ela diz que “todas as dores podem ser suportadas se você as puser numa história ou contar uma história sobre elas”. Se contar e recontar a sua história foi uma forma de Vanessa Barbara poder reviver e enfrentar os seus traumas, para nós, que a ouvimos com atenção, essa escuta nos revela que esse relato de dor e sofrimento vai além de um simples caso particular, para adquirir contornos bem mais amplos, porque diz respeito a um problema sistêmico. A voz de Vanessa ecoa a voz de outras milhares de mulheres sujeitas a toda sorte de violência cotidiana em nosso país. E se é possível extrair alguma lição desse relato de traição e misoginia é que a culpa e a vergonha pelas humilhações, assédios e violações sofridos jamais deve recair sobre as vítimas, mas sobre os seus perpetradores. Por isso é importante contar, tornar público, porque relatos como esse significam um ato de coragem e resistência para minar as estruturas da rede de cumplicidade e complacência que continua a proteger abusadores de todo tipo nos diversos estratos da sociedade brasileira.
Excelente texto e reflexões sobre o ocorrido. É preciso parar de culpar as mulheres, vítimas de violência masculina e expor os fatos, quebrar o silêncio, como forma de lidarmos com o que nos aconteceu e como forma de resistência. Que este caso sirva de incentivo para que outras mulheres não se calem e para que os homens comecem a compreender que passou da hora de nos respeitar.