[1]
16. comemorar a páscoa
como se o pão comprado desse para todos
como se o vinho da garrafa fosse suficiente
como se o peixe na grelha satisfizesse a todos
como se o clichê resolvesse os problemas
como se a abstenção induzisse ao prazer
como se a fome não tivesse de ser saciada
pois pães se multiplicam se mais produzidos
vinhos mais engarrafados se a vindima for boa
pescaria maior propicia ainda mais peixes
que a safra então seja bem farta e abundante
que a uva espremida renda muito mais mosto
que o trigo plantado proporcione mais farinha
que a vida não se resuma a uma refeição
ou a um copo de vinho e peixe pensado
como um sacrifício por abstinências inúteis
coisas possíveis (inédito)
***
[2]
17. pescar
um engodo na ponta de um anzol
e se fisga o que se busca na água e
dela se tira, lugar do logro/da luta,
como quem tira da água o seu sus-
tento e tanto a mais que a vida dá
um engano na ponta de um terço e
se lança uma rede em busca fina de
fiéis que na água se jogam e se creem
assim ungidos para a longa busca do
que se crê a mais que a vida possa dar
um conchavo na ponta de um lápis
e se inscreve, além de datas e leis, a
desesperança de quem, em busca de
alívio, descobre que fica caro pagar
pelo que a vida deveria proporcionar
coisas possíveis (inédito)
***
[3]
18. celebrar corpus christi
se seria este o corpo ungido, quem sabe
untado (é sempre possível a diferença)
por óleos nem tão santos ou nem santos
mesmo, como se essa passagem por aqui
do corpo alheio
não ficasse aquém do que dele esperassem:
a menina sai para a escola e não retorna,
só quando seu corpo é encontrado dentro
de uma caçamba, disposto como se lixo,
um corpo alheio
ou quando um mecânico mata o pai e, em
seguida, a namorada, por causa de uma
oposição e um desejo rejeitado, um rasgo
inútil de ódio cego e impotência frente
ao corpo alheio
por isso o desfile desse corpo ungido, regado
a óleo santo ou untado por graxa impura,
a semeadura do desentendimento, as feridas
do cotidiano e as agruras do mês, a repulsa
pelo corpo alheio
por essa terra que a água molhaencharca
correm corpos untados e também ungidos;
pela terra que voltará a secamolhar, corre
agorasempre sombra assustada de mais
um corpo alheio
adolescente mata primeiro o pai, depois
a irmã, por fim a mãe, proibido que fora
de usar o celular, esse corpo untado,
ungido e então lubrificado para o extravio
de corpo alheio
é assim, por um rastilho súbito, golpe
punhal no ar elevado, por um dê cá essa
palha qualquer esparramada por seco
redemoinho, comemos e bebemos
do corpo alheio
coisas possíveis (inédito)
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[4]
20. rezar
como se a esperança (ou fé, pensam
alguns), acontecesse por encomenda,
ou se a garantia viesse pela repetição,
um martelar de mesmos pedidos que,
enfileirados e classificados, gerassem
uma certeza estabelecida
acreditar que nem inteiro nem meio
pedidos são suficientes, por sagacidade
repetindo-se ambos e outros, como se
doses a mais de uma vacina propiciassem
imunidades transcendentes, garantissem
uma certeza estabelecida
pensar que os olhos do dia são também
os que vigiam na noite e asseguram uma
complexa rede de soluções negociadas
para as pequenas verdades a serem apa-
gadas, as confidências que propiciassem
uma certeza estabelecida
é assim que se implora por um súbito
milagre, uma gota de tal relíquia e se
obtém uma graça pedida, imerecida
talvez, merecida por outros que não
a pediram mas a alcançaram, longe de
uma certeza estabelecida
coisas possíveis (inédito)
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[5]
22. esperar pelo ano novo
sobretudo, por um ano melhor,
essa crença de que, com doze
uvas e uma colher de lentilha,
pavimentam-se estradas adiante
pular sete ondas também, arruda
atrás da orelha; plantar dinheiro
em penca, alecrim ou manjericão
– se por nada, como condimentos
que temperam a vida e lhe trazem
essa sempre passageira ilusão de
que podemos alterar rumos, ramos
de plantas novas, doces e amargas
se há romã, coma-se alguns grãos e
embrulhe-se outros tantos em papel,
carregando-os na carteira o ano inteiro,
há quem confie que trazem dinheiro
pode ser que tudo dê sorte, se a sorte
dependesse de nós e se todos cressem
em poderes daqui ou d’além, até onde
nossa credulidade nos leva e mantém
bom se talvez acreditássemos em nós
mesmos, no próximo, sem dissidências,
ódios, fake news, ilusões – melhor é sermos
o que somos, sem magias, esperanças vãs
coisas possíveis (inédito)
Heleno Godoy (Godói de Sousa, na identidade), nascido em Goiatuba, Goiás, em 1946, é hoje professor titular aposentado de Literatura Inglesa da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás (1991-2016). Mudou-se para Goiânia em 1957, de onde nunca mais saiu. Foi também professor da PUC-GO, quando essa universidade se chamava, mais humildemente, Universidade Católica de Goiás (1974-2008). Depois dos cursos primário e ginasial, entrou para a Faculdade de Artes da UFG, de onde foi expulso em 1968 por “subversão”. Fez novo vestibular, para a então UCG, onde se tornou monitor e depois professor. O ano de sua expulsão da UFG foi também aquele de sua estreia literária, com a publicação de seu primeiro livro de poesia, Os veículos, integrado à Instauração Praxis, proposta por Mario Chamie. Seu último livro publicado, uma antologia celebrativa dos 60 anos de existência do GEN-Grupo de Escritores Novos, é uma obra coletiva que organizou: Poemas do GEN – 60 Anos (Anápolis: Editora Chafariz, 2024). Escritor, em primeiro lugar, mas professor durante 52 anos de sua vida, Heleno Godoy tem licenciatura plena em português-inglês e literaturas correspondentes, fez o mestrado em “Modern Letters” no Graduate Institute of Modern Letter da University of Tulsa (Tulsa, Oklahoma, USA) e o Doutorado em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Entre aqueles dois livros mencionados, publicou, entre outros, As lesmas (romance, 1969), Relações (narrativas, 1981), fábula fingida (poesia, 1985), A casa (poesia, 1992), A ordem da inscrição (poesia, 2004), Lugar comum e outros poemas (2005), Sob a pele (poesia, 2007). Também publicou dois livros de contos: O amante de Londres (1996) e A feia da tarde e outros contos (1999). Como foi professor universitário (graduação e pós-graduação), por exigências acadêmicas publicou dois livros de ensaios: Leituras de ficção e outras leituras (2011) e Leituras de poesia e outras leituras (2012), além de ter organizado quatro livros de ensaios sobre teatro e literaturas de língua portuguesa e inglesa. Em 2015, a martelo casa editorial publicou Inventário: poesia reunida, inéditos e dispersos (1963-2015), com organização da Dra. Solange Fiuza Cardoso Yokosawa. O último livro de poesia de Heleno Godoy foi publicado em 2019: Nossos lugares e o que neles somos.