Depois de algum tempo, ainda sentindo gosto de bile, quando tinha a impressão de que iria morrer sufocado, um dos Entes afrouxou o laço, como se lhe oferecesse outra oportunidade de responder à questão:
“Onde estão os livros?”
Nesse momento, conseguiu inalar um tanto de oxigênio e recompor as forças que lhe faltavam, vindo em seguida à sua mente uma espécie de alucinação que continha geometricamente a imagem do Universo.
Havia alguns dias, suportava a tortura como uma provação, enquanto, para reduzir o seu sofrimento, recitava versos da tradição persa. De modo resoluto, recusava-se a revelar o local secreto onde estavam guardados os livros remanescentes da Biblioteca de Alexandria. Por isso, para esmorecer a sua resistência, um abutre foi trazido para bicar as suas pernas, dia sim, dia não.
O prostrado e ofendido era Harun al-Rachid, o califa de Bagdá, o mais misericordioso de todos os soberanos, o sábio que lia pergaminhos vazados numa língua remota, o astrônomo que escrevia a sintaxe das noites estreladas do Oriente, o poeta que dormia no sábio.
Como se tornara óbvio, os Entes já conheciam as artimanhas que ele usava para engambelá-los. Como o camelo carrega a água em sua corcova, o califa guardava em seu espírito as pérolas do conhecimento e dominava todos os ardis que levam ao despiste e à dissimulação. Às vezes, não era bem sucedido, e tropeçava; depois, se recompunha.
Bendito é Alá, que asperge a água da bem-aventurança na cabeça dos puros e dá aos eleitos a mais hedionda das provações. Porque se manifesta por enigmas, só o Profeta pode oferecer no deserto a flor cujo perfume revela ao tuaregue o oásis recôndito.
A despeito dos garrotes vis, das humilhações e de cada golpe que lhe era infligido, continuava recitando os versos – e foi num inalar fortuito de ar impuro que presenciou algo inusitado – tão incomum como o sol aparecer à noite.
Na sua reduzida lucidez, não sabia se delirava ou se vivia uma página das Mil e umas noites – ou se tudo não era a mesma coisa: as paredes do matadouro onde era mantido prisioneiro, um lugar fétido, dentro do qual os miasmas pairavam, abriram-se sob o impacto de uma luz ofuscante que conduzia o exército invencível de seu vizir.
Recuperando o ânimo, o califa exclamou que Alá é grande e sentenciou aos Entes que o circundavam, ainda segurando os seus instrumentos de tortura:
“Que os infiéis pereçam, pois nenhum deles merece misericórdia!”
Ele pronunciou a sua sentença com a força que vinha no sopro do Zéfiro, levando para longe a pestilência do local.
Os Entes, aqueles que tinham vindo de longe, colocaram-se em posição de defesa. Eles também tiveram a mesma perplexidade do califa. E assim cada um deles, enterrando o seu sonho de conquista, sem conhecer a piedade do fio da espada, foi dizimado numa sinfonia de sangue.
O matadouro, um galpão quilométrico, era agora ocupado por corpos mortos, ao mesmo tempo em que um rio escorria lentamente o seu vermelho que mais tarde tornar-se-ia pútrido.
Na demência que todo império arrasta consigo ao tentar colonizar e escravizar, os Entes cometeram o equívoco de atacar o único reino que abriga a mais linda história que os homens foram capazes de conceber.
Na crônica das guerras que não foi escrita, o califa Harun al-Rachid é um herói que salvou o povo da infâmia – e Bagdá é o nome da cidade onde ele dorme o sono dos abnegados sob o abrigo de um pomar repleto de figueiras e damascos.