Naquela manhã, ele queria ouvir uns blues porque o seu espírito pairava triste e inquieto sobre o apartamento. Estava sozinho. Se a tristeza pudesse ser acariciada, teria pelo menos um bicho de estimação com o qual se divertir. Para a sua salvação, porém, Juliana tinha prometido telefonar, uma ligação que atenuaria o mal-estar que o desequilibrava e, mais tarde, prenunciaria a exaltação de corpos exauridos.
Lá fora, no céu, um pássaro voava entre as nuvens, com elegância e suavidade. Ele o via pela janela aberta, em seu voo calmo. O sol da manhã não era quente; ao contrário, irradiava uma tepidez embriagante. O vizinho casca-grossa do lado direito do corredor, no 206, bateu com força a porta. Além de outros ruídos indistintos no interior do prédio, um martelo malhava em algum lugar com o seu estampido metálico, o canto da araponga confinado. Uma voz de criança emitia gritos agudos nas proximidades. De algum lugar abaixo subiu um aroma de temperos e carne assada que inundou o seu sentido. Diante desse turbilhão de sons e cheiros, pensou:
“Tudo parece irreal e ao mesmo tempo tão familiar” – e parou de pensar nesse ponto.
Quando ia em direção à estante para apanhar o disco de Billie Holiday, ouviu pancadas na porta. Seria a querida Juliana que resolvera se antecipar? Como era sábado, imaginou também que talvez pudessem ser os amigos da agência que resolveram aparecer sem avisar para dividirem umas biritas, como às vezes faziam em alguns fins de semana.
Na hora em que abriu a porta, esperando encontrar o alarido dos colegas ou o sorriso de Juliana, o cano de um revólver empurrou a sua testa para dentro da sala.
Era mais um dia de lugar-comum, tão besta como imprevisível: os bandidos não falham nunca e agem segundo os scripts repetitivos. Na hipótese mais provável, viveria mais um drama urbano, sempre previsível e vulgar. E, se tivesse sorte, sairia vivo desse enredo tenebroso que começava ali.
“Passa logo a grana, playboy, senão leva tiro na cara!” – berrou o sujeito mal-encarado, usando uma jaqueta jeans e um gorro na cabeça. Aí, invadiu a sala ameaçando-o com o seu canhão e fechou a porta com o pé, numa manobra manjada de filme noir.
O que ele respondeu em seguida foi a mais pura verdade:
“Oh, rapaz, acho que você errou de número. Aqui não tem dinheiro.”
“O que é isso, seu filho da puta desgraçado? Tá querendo me enrolar?”
Para aliviar a tensão, respondeu com a melhor boa vontade, ainda trêmulo e sem forças:
“Cara, não tô mentindo, aqui não tem grana. Pode examinar tudo. Você veio ao apartamento errado”, tentando convencê-lo.
Em tom rude, o assaltante mandou-o sentar-se e deu uma geral na sala. No móvel onde tinha prateleiras e compartimentos fechados, começou a abrir gavetas, revirando-as, sem encontrar dinheiro ou objeto que aparentasse valor. Os discos então foram esparramados de qualquer jeito ao longo do piso. Sem trégua, no exame atabalhoado que fazia, rasgou a página de um livro – e disse, fazendo piada: “Ainda bem que não é da Bíblia” – e benzeu-se, rindo, canastrão.
Sempre apontando a arma, mandou-o seguir adiante. Quando chegaram ao quarto, as buscas foram também caóticas: o guarda-roupa teve as gavetas reviradas e os bolsos dos dois ternos minuciosamente examinados. Nada encontrando que valesse a pena, pegou a carteira que estava sobre uma poltrona e constatou que nela havia pouco dinheiro e um cartão de crédito, que guardou no bolso da jaqueta. Passando do quarto para a cozinha, abriu a geladeira, pegou uma latinha de cerveja, abriu-a, deu uma golada comprida, fez “arrrrr”, balançando nervosamente a cabeça, e atirou o recipiente contra a parede, como se mirasse o azulejo ilustrado com flores. Não foi apenas outro ruído no sábado – foi o começo de um surto de quem estava prestes a ficar pirado com um assalto fora do prumo.
“Ô cara, eu já falei que não tenho grana, nem aqui, nem no banco, em porra nenhuma! Você tá perdendo tempo e enchendo o meu saco.”
“Chega de me enrolar, babaca! Você só tá me fazendo perder a cabeça com esse papo-furado.”
Após esse bate-boca, o invasor empurrou-o de volta para a sala. Pediu que ele colocasse as mãos nas costas e prendeu-as com algemas de plástico. Em seguida, deu-lhe uma coronhada na cabeça, que o derrubou. Disse depois, debochando de sua pobreza, enquanto o amordaçava com um lenço, dando mais algumas pancadas em sua nuca, como castigo extra pela frustração que sentia:
“Isso é pra você aprender a não ser otário. Onde já se viu morar num apê desse e não ter uma graninha boa sobrando em casa?”
Com desprezo, olhou para o infeliz estatelado, acendeu um baseado, foi à cozinha, pegou mais uma latinha de cerveja e, antes de sair, deu uma bicuda em suas costelas. Ele gemeu, contorceu-se e depois encolheu-se, as dores fazendo-o tremer.
Aturdido ainda com o último golpe, teve a sensação de ouvir tacões soando nos degraus. Por fim, não ouviu mais nada e achou que o bandido desaparecera de vez. Que o inferno o leve, suspirou desfalecendo.
A certa altura de sua perplexidade, sem saber precisar quanto tempo ficara atado ali sob o piso, formulou um fiapo de raciocínio: por que Juliana ou os amigos não apareceram durante o assalto? Conseguiu concluir, no entanto, que talvez tenha sido melhor assim: além de armado, o cara estava pirado e tudo poderia desandar em desgraça – e voltou à sua prostração.
Na segunda-feira, a faxineira encontrou-o.
Por causa de sua imobilidade, muitas pessoas que entraram na sala julgaram-no morto. Até que, sem alarde, um sensato viu que as suas pálpebras tremiam levemente – e que estava ainda vivo, embora mergulhado no estupor, uma profundidade na qual boiava a impressão de que havia um telefone tocando longe, muito longe, lejano…
Maravilhoso!! Esse deslizar no texto que Luís Araújo proporciona a gente é uma delícia!