Numa escola secundarista de Seattle, por volta de 1959, Bruce Lee se oferece para fazer uma demonstração do Punho Chinês de Wing Chun. A organizadora do evento não entende e pede para repetir. Ele então diz: “Para ficar mais fácil, chame de kung fu chinês”. A moça comenta: “Que nome difícil! Será que tem no dicionário?”, e Bruce responde: “Ainda não, mas vai ter”.
Coincidência ou destino, no Dicionário Houaiss consta que a palavra kung fu foi registrada no léxico da língua portuguesa pela primeira vez em 1970, que deve ser mais ou menos a época em que a palavra também entrou no léxico da língua inglesa.
Nessa ocasião, Bruce Lee tinha 30 anos de idade, e era um fenômeno das artes marciais. Embora não tivesse ainda estourado no cinema com Dragão chinês, já dava aulas e palestras para astros de Hollywood, aplicando suas técnicas revolucionárias de luta e do uso de armas brancas no cinema hollywoodiano.
A cena descrita no primeiro parágrafo está no episódio 14 da série Bruce Lee: a lenda (50 episódios), produzida e exibida pela CCTV (China Central Television), em 2008. Atualmente, a série está disponível na Prime Video.
Quando comecei a vê-la dias atrás, imediatamente me vieram as lembranças da adolescência, quando me sentia arrebatadoramente influenciado pela figura performática de Bruce Lee, suas ideias, seus filmes, os movimentos ágeis e magnetizantes de seu kung fu.
Lendo livros, aprendi que kung fu não é exatamente o nome de uma luta. Os chineses chamam todas as artes marciais desenvolvidas por eles de wu shu. Kung fu seria um tipo de voluntarismo disciplinar aplicado na prática de qualquer coisa, inclusive as lutas.
Kung fu é tempo de habilidade e perfeição. É uma vida inteira dedicada ao treino que dará perícia ao praticante, buscando até a morte a defesa perfeita, o ataque indefensável, e a calma precisa, junto com o respeito absoluto ao oponente.
É interessante aplicar o conceito enquanto vemos Bruce Lee sendo representado na série. Ali, aparece um Bruce burro e inteligente, arrogante e humilde, forte e fraco, louco e lúcido, obstinado e flexível. Para além do kung fu, ele é uma persona do Tao.
Ele encarnou os princípios do taoísmo de um jeito que se podia ver nas suas palavras, nos seus gestos, no seu corpo e na sua arte. Mas antes de ele começar a estudar os ensinamentos do Tao, já enunciava essa fusão de contraditórios. Logo, não foi Bruce Lee que passou pelo Tao, mas o Tao é que passou por Bruce Lee, pregressamente, e o iluminou com toda sua grandeza.
Discípulo do grão-mestre Yip Man, ele aperfeiçoava suas técnicas de luta lendo livros, ouvindo os mais sábios, lutando, batendo e apanhando. “Levar surra é um bom método de aprendizagem”, dizia Bruce, que honrou, como os grandes mestres, o significado da palavra kung fu.
Flexível como a água
Em 1963, Bruce publicou um livro intitulado Chinese gung fu – the philosophical art of self defense (“Kung fu – a arte filosófica de autodefesa”, tradução livre). Ali, ele já mostrava um pensamento diferenciado sobre artes marciais, mas foi em seu Tao of Jet Kune Do, publicado postumamente, em 1975, que mostrou como funcionava sua cabeça, atando o pensamento profundo das tradições filosóficas à ação do corpo.
Neste livro, Bruce diz coisas como: “Se dentro de você nada enrijece, as coisas externas tendem a se revelar. Ao se mover, seja como a água. Parado, seja como um espelho. Responda sempre como um eco.”
Parece hermético. Mas basta olhar uma sequência de luta nos filmes de Jackie Chan que você vai ver o efeito de ser flexível como a água. Se o prendem por um lado, ele escapa por outro. Se o adversário se posiciona como um urso, ele também se faz de um.
“Responder como um eco” também é típico das lutas no cinema desde então. Se o oponente te soca, você bloqueia o soco já dando outro soco, se te chuta, bloqueia o chute com outro chute, como um eco. Isso é Bruce Lee.
Sua sensibilidade, no entanto, ia além da arte de dar sopapos. Ele de fato aprendeu filosofia. Sabia o que era estética, o elemento fundamental da arte. Para ele, a luta era uma arte que emanava da alma e podia ser vista no corpo em movimentos precisos.
Bruce Lee sempre foi colocado entre os gênios do movimento corporal, como Muhammad Ali e Morihei Ueshiba, por exemplo. Acho que Bruce é mais do que um gênio do corpo, é uma formidável engenharia que conjuga corpo e mente de modo muito superior aos demais.
Ele fecundou uma certa cultura pop americana direta e indiretamente. Foi professor de defesa pessoal de Myke Stone, jovem carateca e dublê de filmes de ação afro-americano, amante de Patricia Presley, mulher de Elvis Presley. Esse universo de balés da morte fascinava o rei do rock, a ponto de ele incluir coreografias do kung fu e do caratê nos movimentos pélvicos de seus shows.
Bruce ensinou artes marciais a Kareem Abdul-Jabbar, astro do basquete que, no esplendor da juventude, viria a fazer o último filme do lutador-ator chinês, O jogo da morte, em 1973. Foi professor de defesa pessoal de Steve McQueen, não o grande diretor britânico, mas o talentoso ator americano, que fez muito sucesso nos anos 1960 e 1970 (Sete homens e um destino, Os implacáveis).
James Coburn (Sete homens e um destino) também foi aluno de Bruce Lee. Mas o maior astro que teve aulas com Bruce foi Chuck Norris, que décadas depois viraria emblema memético antes dos memes, mito urbano entre o sarcasmo e a admiração dos fãs troladores de imagens. Ele foi antagonista de Bruce em O voo do dragão (1972).
Eu gostava dos filmes de Norris, mas comecei a ficar bolado – justo eu que sempre fechei pactos com filmes de ação, passando por cima dos exageros pouco poéticos – quando o vi estourar com a força da mão uma garrafa d’água de vidro, no filme Os aventureiros do fogo. Ele fechou a mão e foi apertando até quebrar a garrafa sem arrancar uma nesga de sangue sequer.
Mas, tudo bem, já estou ouvindo alguém dizer, “isso é coisa pouca, Chuck Norris é capaz de nocautear uma águia-americana lá no alto só com o vento de seu soco cá embaixo (Carlão do Soco Sônico)”. Acho que Bruce Lee tem alguma coisa a ver com a fundição desse monstro.
Bruce foi difusor de técnicas improváveis, como o soco de uma polegada e o manejo veloz do nunchaku, que de tão rápido as câmeras da época não conseguiam captar a imagem, além de ser capaz de executar oito socos consecutivos por segundo.
Quando Bruce morreu, o peso pesado Muhammad Ali, com todo o furor e inteligência, invencível com punhos e palavras, disse: “Morreu o único homem capaz de me vencer”. Como pode Ali ter dito isso? Eis a força da lenda.
O único homem capaz de vencer o invencível Ali (1,91m) era um meio médio ligeiro (1,67m), meio médio, meio ligeiro, um grão de tempestade com Deus e o diabo dentro. Talvez fosse ligeiro demais para perder, e não perdeu. Até hoje, continua se achando. Até hoje, há ainda quem o ame e o odeie, como Quentin Tarantino.
Há amor naquele coração transgressor de Tarantino, a ponto de pôr Bruce como personagem num filme, só para este levar um sacode de um dublê (Era uma vez em Hollywood, 2019). A filha de Bruce, Shannon Lee, não gostou. Dizem que protestou bastante, chiou nas redes sociais e tal.
Shannon Lee protestou, mas eu, que sempre amei Bruce Lee, morri de rir. Mas também já morri de chorar (morro demais para um mortal, eu sei) ao ver a bela homenagem que Tarantino fizera a Bruce no filme mais importante e mais completo como cinema representante da estética relacional, Kill Bill.
Em Kill Bill, o uniforme amarelo, o capacete e a moto usados por Mamba Negra (Uma Thurman), a protagonista da bela história de vingança, são semelhantes aos que Bruce usou no Jogo da Morte.
A cena em que Mamba Negra, enterrada viva, arrebenta a tampa do caixão com o soco de uma polegada faz Norris ficar chinfrim. Mas Norris não atuava, nem poderia, em filmes com a consagração e a legitimidade artística de Tarantino, alguém pode dizer, e é verdade.
Batendo em homens
Bruce aprendeu o soco de uma polegada com o mestre Yip Man, que aprendera de seu mestre, que aprendera de mestres que aprenderam de uma monja mestra do século XVIII chamada Ng Mui, a inventora do estilo Wing Chun.
Dizem que era uma monja muito sábia. Uma vez viu um homem tentando raptar a filha de um humilde casal de camponeses, chamada Wing Chun. E aí, Mui desenvolveu uma arte marcial só pra ensinar a Wing Chun como é que se bate em homens que não amam as mulheres.
Assista à trilogia O grande mestre, veja a cena de um garotinho num velocípede, pedindo para o pai (Yip) acabar logo com a luta, e você vai entrar, por um instante, no universo de Ng Mui e Wing Chun.
Eu também fui influenciado por Bruce Lee. Quis ler tudo porque ele era um misto de filósofo e boxer. Talvez eu esteja romantizando um pouco, mas é que todos os meus interesses nasceram nessa época.
Para falar a verdade, todas as nossas grandes sacadas foram cavadas na adolescência. É claro que aqui também estou citando alguém: “A adolescência é a única época em que se aprende alguma coisa”, diz Proust. Não consigo mais falar senão entre aspas (Bakhtin).
O fato é que Bruce mudou a estética do cinema de ação. Filmes de ação e luta como Ava, com Jessica Chastain, The old guard, com Charlize Theron, Contra o tempo, com Jet Li, têm uma estética de luta fundada por Bruce Lee, assim como as cenas de luta de Matrix.
Se você reparar bem nos filmes de ação de hoje verá a influência do jiu-jitsu brasileiro instalado em Hollywood. Bruce fez isso com o kung fu, numa incomensurável escala megaindustrial, revolucionária e para sempre, dos anos 1970 para cá.
Tranquilo e infalível
Esses personagens que você vê em filmes de ação e séries de tevê, inteligentes pra caramba e bons de briga, são todos saídos do arquétipo de Bruce Lee, digo arquétipo porque ele é um tipo de mito, mas também foi um tipo que existiu, único e extraordinário.
Ele é citado por Ice MC (“Cinema”), está numa canção de Caetano Veloso, “tranquilo e infalível como Bruce Lee” (“Um índio”, de 1977), em músicas de Raul Seixas, indiretamente – “vê se tem kung fu aí na outra estação” (“Super-heróis”) – ou diretamente, com o lirismo caótico representando a malha fragmentária da cultura de juntamento e superposição de coisas da modernidade-lego de “Na rodoviária”, em que Raul diz:
“O oboé e a flauta soam/ Assim como os sinos ecoam/ Em ecos nobres procedentes do Oriente/ Nada de novo no front/ Treze vezes/ Anteontem. (…)//Cinderela e Aladim/ Abracadabra e Abra Merlim/ Abre-te Sésamo, James Dean/ Noves fora zero – nada/ Al Capone, Bruce Lee.”
Socou inspiração em Kung Fu Panda, o filme, e Pato Fu, a banda (só no nome, evidentemente), videogames, e em todas as paródias cinematográficas de artes marciais. Bruce Lee, essa Marilyn Monroe do chute e soco, chute e soco, chute e soco. Bruce Lee, Andy Warhol roçando o polegar no nariz, esticando a mão e flexionando e soltando os dedos, chamando alguém para lutar.
Bruce chegou a participar de um dos episódios da série Batman, nos anos 1960. Ele estava dando um sacode no Robin quando Batman chegou para salvar o coleguinha.
Como já disse, kung fu é tempo de habilidade e perfeição. Tempo é uma ogiva de abismo. Se explodirmos o tempo, só teremos o caos, e o caos é o abismo insondável. Estou misturando mitologia grega com o pensamento chinês, mas era mais ou menos isso que Bruce fazia, misturava Platão com Lao-Tsé.
No fundo, praticar kung fu é isso mesmo, é entender a temporalidade da vida, é dominar o tempo para alcançar a habilidade de fazer algo e – ao adquirir essa habilidade – manter o domínio sobre o tempo para atingir a perfeição no que se faz.
No fundo, estamos falando de paciência, método e treino (“Serei paciente até que a paciência se espante da minha paciência”, verso de um poema árabe no Livro das mil e uma noites), estamos falando de paciência dentro do tempo dominado, como a suavidade conduzindo a força.
Aprendi muito com o kung fu. Só não aprendi a lutar e, portanto, a fazer. Não fui hábil o bastante para seguir o Tao. Fracassei. Essas coisas estão todas na cultura pop, os fracassos, as vitórias que parecem derrotas, as fusões de pensamento, os mitos fundantes das forças cósmicas, “tudo, em todo lugar, ao mesmo tempo”.
Bruce Lee estudou filosofia numa universidade americana, orientado por um professor branco ocidental open minded, mas fez isso pondo ênfase na tradição do pensamento oriental. Foi o primeiro a levar para o cinema de ação de Hollywood (arte pop por excelência) a ideia de uma ação poderosa e reflexiva.
“Um homem sábio pode aprender mais com uma pergunta idiota do que um idiota com uma pergunta sábia.” “Isso é Nietzsche?”, pergunta Luther Braxton. “Não. Bruce Lee”, diz Raymond Reddington, em The blacklist.
Bruce Lee é um personagem pré-decolonial, ou (in)decolonial (força de implosão do colonialismo na China), um sujeito à frente de seu tempo, um tipo único e antecipado de ásio-futurista. Sua morte está prestes a se tornar cinquentona. Morreu em julho de 1973, aos 32 anos, mas ainda vive. “Morrer sem ser destruído é ser eternamente presente”, diz o Tao.