[Coautor: Vítor Hugo dos Reis Costa[1]]
Para alguns cientistas como Lawrence Krauss, Stephen Hawking e Richard Dawkins, a filosofia já está ultrapassada ou até mesmo morta, e há muito deixou de acompanhar os avanços da ciência. Se eles tiverem razão, por qual motivo deveríamos dar importância a e estudar uma área do conhecimento aparentemente tão decrépita e arcaica, vinculando algum valor a ela?
A filosofia se originou na Grécia Antiga, no século VI a. C., e desde o seu início se preocupou com questões como a origem do cosmos, o sentido da existência, o conhecimento, os valores humanos, o modo ideal de se levar a vida, e inúmeros outros importantes saberes. Assim, podemos perceber que a filosofia, ao menos em seus inícios, buscou dar conta de todos ou quase todos os campos intelectuais possíveis.
E hoje? Qual a utilidade da filosofia no mundo contemporâneo? A pergunta se justifica se levarmos em consideração que as clássicas questões filosóficas encontram atualmente tratamento especializado em áreas de conhecimento específicas e aparentemente mais capacitadas para entregar as devidas respostas que a filosofia busca há mais de dois milênios. Além disso, a filosofia nos últimos tempos tem sido constantemente violentada e menosprezada por aquilo que durante tanto tempo ela foi justamente responsável por fundamentar: a ciência. Nunca é demais lembrar que a(s) ciência(s) teve(tiveram) suas origens no seio da filosofia a partir de arranjos de pressupostos lógicos que foram necessários para o desenvolvimento do método científico. Para Pigliucci (2012), tudo se passa como se alguns cientistas sofressem de uma versão intelectual do Complexo de Édipo, a saber, o Complexo Antifilosofia, por meio do qual tais cientistas fariam da ciência um meio de golpear sua genitora justamente por não a conhecer profundamente e reprimir seu amor por ela.
A filosofia não parece ter necessidade de cumprir alguma exigência de possuir utilidade, já que é um campo do conhecimento completamente autotélico, isto é, um campo que tem a capacidade de estabelecer por si mesmo o objetivo de suas ações. Entretanto, em tempos em que cada vez mais essa área é negligenciada, se faz necessário o esforço para que os complexos valores da filosofia sejam apresentados de maneira exotérica, ou seja, transmitido sem complicações ao público geral, a fim de mudar esse paradigma. Isso posto, é necessário compreender que a filosofia possui dois importantes encargos: o primeiro se trata de seu posto quase magistral de instituidora das mais vastas áreas do conhecimento e o segundo de instrutora dessas mesmas áreas. Em outras palavras, a filosofia é o saber que fundamenta (instituidora) e orienta (instrutora) os outros saberes.
Porém, é importante ressaltar que essa definição não é limitada ao campo das ciências ou dos saberes, de modo que a filosofia, por meio de seus questionamentos reflexivos, também se preocupa em fundamentar e orientar a sabedoria necessária para uma vida bem vivida (ética), de forma que, caso preciso, mediante os mesmos questionamentos que deram origem a certas áreas do conhecimento, a filosofia pode tentar – ou pretender – limitar ou restringir a ciência em prol de um bem viver, como podemos observar, por exemplo, a área da filosofia denominada bioética. Esse campo se preocupa em traçar as restrições éticas a partir da problematização crítica das pesquisas científicas que envolvem questões relacionadas à vida e que podem colocá-la em risco, tais quais, como exemplo, as monstruosidades que eram cometidas por cientistas dentro dos campos de concentração nazistas. Não é porque a ciência tudo pode que tudo deve cientificamente ser feito.
Outro importante problema que deve ser acentuado acerca dos objetivos da filosofia é o de que, apesar de ser responsável por instituir vários campos do conhecimento humano, a filosofia ainda não – ou talvez já não mais – consegue instruir de maneira adequada tudo aquilo que institui. O principal contratempo dessa situação é que a filosofia estabelece e acompanha várias áreas intelectuais e, por conta de sua complexidade e responsabilidade, deve ser a mais rigorosa e possuir mais vigor que qualquer outro campo do conhecimento humano. Todavia, esse patamar ainda não foi atingido, haja vista que, até o período atual, não detemos em nossas mãos uma posição de inspeção a respeito do que perambula pela filosofia. Nesse contexto, vale apontar a entrevista do físico e filósofo argentino Mario Bunge (2003), em que deixa claro que boa parte dos filósofos atuais não aborda novos problemas, não sabe o que se passa na ciência e na tecnologia e nem mesmo chega a analisar os principais problemas que assolam a humanidade.
Dessa forma, é preciso compreender que, apesar do longo tempo de existência, a filosofia ainda está em um processo de desenvolvimento juntamente em relação a tudo aquilo que envolve o conhecimento. Afinal, é graças aos questionamentos que surgiram dentro da filosofia que químicos, físicos, programadores, astrônomos, biólogos e diversos outros cientistas puderam dar respostas plausíveis a respeito de perguntas, como: o que é a matéria? O que é o espaço-tempo? É possível criar inteligência artificial? Do que estrelas são compostas? Como a vida é gerada? E várias outras questões.
Portanto, a tão questionada utilidade da filosofia vai desde o auxílio ao modo de vida no qual os sujeitos podem se basear para viver bem (ética), até os questionamentos filosóficos que são responsáveis por instituir as diversas áreas da(s) ciência(s), mas também necessários para limitar até onde esses conhecimentos devem chegar, de modo que seja possível evitar que acontecimentos desastrosos e prejudiciais possam vir a afetar a vida humana. A filosofia é uma angústia perpétua, uma expectativa apreensiva com relação ao que está por vir e é isso que a mantém e a manterá em nossa sociedade.
[Revisão de Pedro Silva e Guilherme Baís. Revisão final e edição de Rosângela Chaves]
Referências
PIGLIUCCI, Massimo. Lawrence Krauss: another physicist with an anti-philosophy complex. Rationally Speaking, 2012. Disponível em: http://rationallyspeaking.blogspot.com/2012/04/lawrence-krauss-another-physicist-with.html. Acesso em: 27 fev. 2023.
FE, Eduardo Martínez de la. Mario Bunge: la filosofía no ha muerto, pero está gravemente enferma. Tendencias21, 2003. Disponível em: https://tendencias21.levante-emv.com/mario-bunge-la-filosofia-no-ha-muerto-pero-esta-gravemente-enferma_a150.html. Acesso em: 27 fev. 2023.
[1] Doutor em filosofia pela UFSM. E-mail: costavhr@gmail.com
O artigo é o nono da quinta edição da série Projeto Ensaios, um projeto de divulgação filosófica coordenado pelo professor Weiny César Freitas Pinto, do curso de Filosofia da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), em parceria com o site Ermira Cultura, que visa colocar em diálogo a produção acadêmica com a opinião pública por meio da publicação de ensaios. Confira os outros artigos publicados:
- O contemporâneo disforme, de Lucas Mateus Barreiro Goes e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/04/o-contemporaneo-disforme/.
- Democracia e a humanidade dos outros, de Carlos Eduardo de Lucena Castro e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/11/democracia-e-a-humanidade-dos-outros/.
- Culpa e consciências limitantes, de Luiz Augusto Flamia e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/18/culpa-e-consciencias-limitantes/.
- Monzani e a filosofia brasileira da psicanálise, de Maria Eduarda Rodrigues, Paula Entrudo e Weiny César Freitas Pinto, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/03/25/monzani-e-a-filosofia-brasileira-da-psicanalise/.
- Como abordar textos filosóficos?, de Natasha Garcia Coelho e Paula Entrudo, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/01/como-abordar-textos-filosoficos/.
- Engajamento e crise: os desafios científicos que a filosofia enfrenta no mundo contemporânea, de Pedro H. C. Silva, Ilker Luiz Alves Batista e Jonathan Postaue Marques, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/08/engajamento-e-crise-os-desafios-cientificos-que-a-filosofia-enfrenta-no-mundo-contemporaneo/.
- A renovação líquida de Orfeu, de Amanda Malerba, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/15/a-renovacao-liquida-de-orfeu/.
- A arte de interpretar filosofia em seu contexto histórico, de Guilherme Baís do Valle Pereira, Vítor Hugo dos Reis Costa e Andre Koutchin de Almeida, disponível em http://ermiracultura.com.br/2023/04/22/a-arte-de-interpretar-filosofia-em-seu-contexto-historico/.
Interessante.