Mario Arregui (1917-1985) se notabilizou pelos contos. Nunca publicou um romance. Suas narrativas breves entraram para a história da literatura uruguaia pela retratação do homem dos pampas, da cultura gaúcha e sua marcante dicção (que, modo geral, está presente nas regiões do Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai).
Ao falar do gaúcho, em particular, das suas crenças, dos seus desejos, de suas inclinações, Arregui atinge aquilo que todo autor almeja e quer, que é expressar a condição humana universal, as misérias e grandezas com as quais fabricamos o mundo.
“Cavalos do amanhecer”, densamente significativo, está na coletânea homônima de nove histórias, publicada no Brasil pela L&PM Pocket (2003), com tradução de Sergio Faraco. Ambientado supostamente na segunda metade do século XIX, o conto apresenta uma atmosfera tenebrosa.
Desde as primeiras linhas, algo estarrecedor aparece em signos verbais como nuvens que prenunciam uma tempestade. Na madrugada de um dia de outono, ainda abraçada pela escuridão, Martiniano Ríos já está acordado. Ele toma chimarrão na beira do fogo de chão, num compartimento do rancho onde mora com a família.
Está ali com seu cachorro Correntino e seus pensamentos. Não se ouve nada naquele ambiente envolvido pela solidão do tempo, quando tudo é tão silente e turvo quanto as águas de uma cisterna.
Enquanto isso, sua mulher, Josefa, e seu filho de oito anos dormem no quarto ao lado. Tudo é sossego. Martiniano Ríos, fazendeiro quarentão, está rodeado pelos que o amam, pelas coisas que o confortam e o alimentam. Na sua estância, há vacas leiteiras, cavalos, galinhas, frutas, erva-mate, fumo.
Sua mansa estância produzia tudo que era necessário para se viver bem. Além disso, Martiniano sentia o “bem-estar do corpo descansado e são que dormia com mulher”, uma mulher bem mais jovem que ele, submissa, “tristonha e indiática”.
De repente, um barulho longínquo invade o mar de tranquilidade, e a tensão se avoluma na atmosfera do mundo de Martiniano. O cachorro late, o dono manda-o se calar. O cachorro insiste no latido. O fazendeiro então discerne os sons de cascos de cavalos trotando. Sabe que são muitos, uns cinquenta, e sabe que vieram recrutá-lo para a guerra. Mais uma.
Já havia participado de duas guerras e, àquela altura, não tinha mais apreço pelos entreveros do poder, em que os guerreiros estavam sempre a serviço dos blancos ou dos colorados. Queria ficar sossegado em casa. Queria permanecer daquele jeito, “lavando morosamente o mate comprido” e sentindo a vida.
Sabia que isso não ia acontecer, e então acordou a mulher para lhe dizer que cavaleiros estavam vindo e que tentariam levá-lo para a guerra. Disse à mulher que ia se esconder. Sem o protesto de Josefa, foi o que fez. Desceu no poço da fazenda pela corda amarrada ao balde que puxa água, e ficou lá até a metade da manhã.
Quando decidiu subir de novo, encontrou o cachorro morto, e o filho castrado. A mulher estava “sentada no cepo, curvada […], nua e protegendo-se com um cobertor”. E ele entendeu que “muitos homens se haviam revezado em cima dela”.
Josefa olhava para ele com olhos expressivamente abertos, mas sem dizer nada, como se não entendesse sequer quem era, muito menos por que Martiniano os abandonara. Ele olha para os dois, e volta para o poço, onde aparentemente se mata. Eis toda a história do conto. Sua riqueza, no entanto, está nos detalhes.
Um escritor certa vez disse que a “leitura nos permite descobrir o valor da vida”. É verdade. Mas, ao percebermos o valor da vida, podemos nos deparar também com a terrível descoberta do desamparo e as tristes vibrações da impotência. A literatura tem essa força. É um elemento poderoso de descobertas no estranho e surpreendente jardim das subjetividades.
Martiniano desceu no poço para se esconder, mas foram Josefa e seu filho que caíram no abismo. E voltar de lá, meu amigo, voltar de uma queda nas profundezas insondáveis da experiência traumática, marcados pela violência brutal, é tarefa muito dura e dolorida, que requer uma força que o próprio abismo nos nega. Poucos conseguem regressar.
Reflexos
Antes de entrarmos na questão ética que a narrativa nos impõe, vamos falar da proposta estética que o autor magistralmente constrói, pondo diante do espelho a figura arquetípica de Ulisses, personagem grego dos poemas épicos Odisseia e Ilíada, de Homero, da peça de teatro As troianas, de Eurípedes, dentre outros textos.
Embora este conto de Arregui não remeta diretamente a Ulisses, ele cria um ambiente inversamente similar ao do herói grego, com sugestões sígnicas, que atravessa “Cavalos do amanhecer” pelo que Ricardo Piglia chamou de duplo movimento.
O caráter de Martiniano está oculto no segundo movimento da leitura. O incompreensível do conto se mostra pálida e ambiguamente nas linhas paralelas em que encontramos também, na contramão, os movimentos do herói grego.
Ulisses luta em Troia. Vai à guerra a pedido de Menelau, cuja mulher, Helena (“esposa descuidosa da fidelidade” [As troianas]), havia sido raptada pelo príncipe troiano, Páris. Para manter a honra dos gregos, deve-se destruir Troia, e destruir significa não deixar pedra sobre pedra, significa matar os homens, subjugar as mulheres, saquear a cidade etc.. Essa história está em Ilíada.
Os troianos, que amavam cavalos e eram exímios domadores, estavam vencendo a guerra. Ulisses teve a ideia de construir um cavalo imenso, colocar no seu ventre vários guerreiros de excelência, inclusive ele mesmo, e deixá-lo em frente ao portão principal de Troia, numa madrugada escura.
Imaginando ser presente dos deuses, os troianos puxaram a gigantesca escultura para dentro dos muros da cidade. Na madrugada seguinte, ainda banhada pela sombra da noite, o cavalo se abriu, e de seu ventre homens saíram para começar os trabalhos funestos da destruição. Um presente de grego.
Para lutar em Troia, Ulisses deixara em Ítaca a mulher Penélope e o filho recém-nascido Telêmaco, além do cachorro Argos. Lutou durante dez anos, e venceu. Na volta, acaba cegando Polifemo, ciclope filho de Poseidon, furioso deus dos mares, que, para vingar o filho, castiga Ulisses.
Poseidon aplica uma espécie de cegueira de direção no herói grego, confundindo seu caminho de volta, fazendo-o demorar uma década para regressar. E aí, de um lado, o marido passa por tudo quanto é tipo de provação, e de outro, Penélope e o filho também. Ulisses fica, portanto, 20 anos longe de casa.
Chegando a Ítaca, Ulisses, já quarentão, teve de lidar com uma crise sui generis. Seu palácio estava lotado de pretendentes à mão da suposta viúva. Ninguém sabia que ele havia sobrevivido. Aliás, os pretendentes insistiam que Ulisses já era morto, que Penélope precisava seguir as leis locais e escolher um novo marido.
Penélope resistia, tecendo um imenso tapete durante o dia, e desfazendo-o durante a noite. E dizia que quando terminasse de confeccionar aquela peça, escolheria um pretendente. Enquanto isso, os homens comiam toda sua comida, matavam o gado, faziam banquetes, dilapidando a herança do jovem Telêmaco, que tinha agora 20 anos.
Era preciso cautela e estratégia para efetivar o retorno. Ulisses se disfarçou de um velho peregrino e entrou no salão do próprio palácio. Só Argos, já ancião e cansado, o reconheceu. Mas, emocionado, Argos morreu ali mesmo. Numa cena sublime de luta, Ulisses mata todos os pretendentes e se revela para a família. O herói está de volta.
Ulisses se apresenta como herói nacional e da própria família. No entanto, se olharmos nos detalhes, sua alma também tem manchas escuras e controversas. Em Troia, da matança dos homens sobrou uma criança de mais ou menos seis anos, Astiânax, filho do valente Heitor e neto do rei Príamo, mortos em combate.
Sabendo disso, Ulisses convenceu os gregos de que a criança deveria ser jogada do alto das torres de Troia. E foi o que ocorreu. Lá embaixo, o que se viam agora eram só os restos de uma primavera que não podia mais sonhar, um pequeno corpo plantado nas ruínas troianas sem a esperança de nascer e florir.
Já Martiniano não é herói na família; e na guerra, não sabemos. O que podemos fazer é costurar detalhes que aproximam as duas figuras e seus mundos. Por exemplo, na sala, onde ele tomava chimarrão, havia pregada na parede uma peça de bronze “que um dia tinha sido a calota de uma carruagem luxuosa”.
Na parede, a peça “servia de pedestal a um candeeiro”. Como essa peça teria chegado lá? Espólio de guerra, como no saque dos gregos a Troia? O segundo espólio aparece em outro trecho, um “pedaço de antigo varal de carreta”, usado por Martiniano como “travessão horizontal” sobre os pilares da estrutura armada para puxar a água do poço.
Em outro conto deste mesmo livro, intitulado “O regresso de Ranulfo González”, Arregui remete seu personagem diretamente a Ulisses. Para ir à guerra, González, “Ulisses Campeiro”, deixa em casa a mulher, “sua Penélope”, filhos e um cachorro, “que não o esperava como aquele do engenhoso grego”.
O batalhão de González foi massacrado pelos inimigos, e ele só não morreu porque se fingiu de morto. Ao voltar para casa, nem sua mulher o esperava mais, e a sogra fala: “- disseram que te defuntearam em Tacuarembó.” “– Quem disseram?” “Ué, todo mundo…”
Talvez González seja o reflexo de Ulisses no espelho, enquanto Martiniano Ríos apareça apenas como reflexo do reflexo, já apagada a coragem que tivera outrora, se escondendo num buraco, em vez de encarar de novo o insustentável fardo da guerra, ou ter pelo menos dado a vida para defender mulher e filho.
Águas de outro mar
Há inúmeras outras marcas verbais, em “Cavalos do amanhecer”, que sugerem Martiniano como um Ulisses dos pampas, ou seu pálido reflexo no espelho, um Ulisses covarde e cansado de luta, um Ulisses egoísta, ensimesmado, solitário e triste. E, longe da astúcia e solércia do grego, um Ulisses meio burro, sem malícia.
Na Odisseia, a deusa “Aurora belas-tranças” – ou “Aurora dedos-róseos” – é constantemente citada como comunicadora da luz. Em “Cavalos do amanhecer”, o prenúncio do dia também é citado, mas de modo negativo, comunicando outra coisa: “a aurora parecia retardar-se além da conta”, “estava nascendo o dia no céu, estava subindo a estrela d’alva como um olho de cavalo assassinado”.
A composição do personagem e sua relação com Ulisses e a trajetória pós-guerra começam no nome. Martiniano Ríos tem mar no nome logo de início. Depois corre para o plural de rio. Em seguida, vemos o homem entrando num poço, cuja água é “salobra, levemente azulada”, como a água do mar.
A alma de Martiniano (talvez seu inconsciente) navegava nessa imensidão desoladora e solitária. Ao entrar no poço, Martiniano entra em si mesmo, e lá se depara com os mortos de todas as terras e mares.
No escrutínio do pensamento de Martiniano, não aparecem arrependimentos do que fez nas duas guerras que lutara. Mas, quando ele desce no poço, o leitor pode experimentar um rol de sensações sombrias que surgem e se misturam às paredes do poço, ao espírito de Martiniano e às aguas, “que deslizam sem parar como répteis sem olhos”.
“Aquele que desce vai levando seus ossos até os ossos de seus antepassados e daqueles seres sem cara e sem nome que foram comidos pela terra em qualquer parte do planeta.”
“O fundo do poço é um lugar onde se está sem estar de todo, onde muito se participa do não-estar, do ter partido, do estar morto.” É o inferno, é Hades, no qual Ulisses também desceu, mas em outra circunstância, com outros resultados. Ulisses foi até o inferno em busca de respostas que clareassem o caminho de volta para casa.
As águas do poço são outro mar, que leva Martiniano para outra Troia, de onde ele volta e encontra seu lar destroçado. A mulher de Ulisses, da Odisseia, esteve muito perto de sofrer um fim parecido, de ter muitos homens se revezando em cima dela.
As fofocas de Ítaca giravam em torno disso, em torno da história de que a cama de Penélope não esfriava, de tantas visitas. Quem lê A odisseia de Penélope, belíssimo romance de Margaret Atwood, ouve a voz da rainha de Ítaca se lamentando desses relatos de intriga.
Alertas éticos
Em todo caso, já entramos no terreno da moral. A possibilidade do sexo, sim. Penélope poderia – ou pode – ter se envolvido com alguns dos pretendentes que passavam os dias fazendo banquete no palácio da rainha. Mas estupro não é sexo. Se Ulisses não voltasse, seria esse o fim de sua amada?
Martiniano não foi para, nem volta da, mesma Troia. Sua mulher foi estuprada, e seu filho foi castrado, que é um tipo de morte, um tipo sórdido e ontológico de chacina. A guerra deve ter massacrado seu orgulho de tal modo que ele passou a habitar melhor o silêncio.
Pode ser que a guerra tenha tirado sua coragem e deixado apenas a covardia. Dentro do poço, a solidão e a sombra silente das águas são como o sangue que corre nas suas veias agora. Ou talvez já estivesse morto por dentro.
Ele não vê a família como alteridade. “Aquelas criaturas adormecidas – carne quase própria, repousada e indefesa –, mais do que próximas, estavam como dentro dele, profunda e misteriosamente.” Será que Josefa, com sinais de submissão e de origem indígena, era um tipo de espólio também?
Só podemos traçar conjeturas. Naquele intervalo com a família, sentindo-a “dentro dele, profunda e misteriosamente”, talvez ele estivesse tentando ressuscitar. Mas o leitor olha para a mulher estuprada e o filho castrado, o cachorro degolado, e não se conforma.
Tudo é espanto. Por que Martiniano se escondeu, em vez de ficar para defender a casa? Eu seria capaz de fazer o mesmo? Eu seria capaz de abandonar minha família e me enfiar num buraco para não enfrentar o fardo que me foi jogado pelo mundo?
Tudo é o “vórtex interminável de horror”, para citar as palavras de outro autor. A vida vale muito, e por valer tanto é que o leitor não deixa de olhar para si mesmo e sua família e se horrorizar, primeiro com o que ocorreu com Josefa, o filho e o cachorro, depois, com o abandono de Martiniano, sem explicação, a não ser dizer que não quer ir para a guerra.
Seria preciso sentir a alma de Martiniano para comparar com os nossos próprios vacilos, nossas hesitações, lá onde ficção e realidade se misturam. Essas sombrias trilhas da existência que a literatura nos oferece servem como alertas éticos do valor da vida no outro. Se o outro está em nós, se nós somos moldados a partir do outro, defendê-lo é defender a nós mesmos, abandoná-lo é desistir de nossa humanidade.