Personagem no jornalismo é uma pessoa cuja história ilustra o tema de uma reportagem. O jornalista busca a narrativa de determinada pessoa que combine com a história que vai contar, não a pessoa em si. Ele passa a enxergar a parte (seu personagem) pelo todo (a pessoa por trás da personagem). Assim, categorizando, o jornalista desumaniza suas personagens e a si próprio, pois deixa de enxergar o ser humano por trás de cada uma das pessoas com as quais se depara diariamente.
Enxerguei com clareza essa separação que nós jornalistas fazemos, até como forma de nos protegermos de dores e de sofrimento com os quais nos deparamos na profissão, ao visitar uma importante personalidade pública. Meu personagem tem 88 anos de idade. É um senhorzinho (que, aliás, batizo de Sinhozinho neste texto) e representa uma geração de pioneiros de Goiânia. Ele chegou à cidade em 1937. A capital não era uma cidade, era um canteiro de obras, pois sua construção começara apenas quatro anos antes, em 1933.
Sinhozinho, como tantos pioneiros, ajudou a construir as bases da atividade à qual se dedica desde 1957. Por isso é uma pessoa influente, apesar da aposentadoria. Aliás, continua um homem poderoso e polêmico. Como ocorre com qualquer pessoa nessa condição, há os que o respeitam e o admiram; os que o respeitam, mas o condenam; e aqueles que nem o respeitam. Com poucos minutos de conversa comecei a perceber o homem escondido em meu personagem e a enxergar além de sua imagem de pessoa pública.
“Continua um homem poderoso e polêmico. Como ocorre com qualquer pessoa nessa condição, há os que o respeitam e o admiram; os que o respeitam, mas o condenam; e aqueles que nem o respeitam.”
Ele recebeu-me em sua casa numa manhã de sexta-feira. Sentei-me sozinha na sala de estar a tempo de tomar água, um café, servido pela empregada que trabalha com a família há mais de 20 anos, e de observar a decoração, móveis, objetos, fotos e de imaginar histórias que se passaram naquela sala. Duas peças do mobiliário, em particular, atraíram a minha atenção, um porta-revistas e uma cristaleira.
O porta-revista contava um pouco sobre mim. Ele portava poucas revistas, todas antigas. Nada mais simbólico da crise do jornalismo impresso, sobre o qual nós jornalistas nos debruçamos há mais de uma década, do que aquele móvel quase vazio e suas poucas revistas com páginas amarelas e envelhecidas. Símbolo de uma era do jornalismo analógico que já passou, assim como muitas histórias que já passaram por aquela sala. A beleza e delicadeza da cristaleira, com pouco mais de um metro de altura e cerca de 80 centímetros de largura e suas belas taças de cristal prenderam minha atenção por algum tempo. Depois descobriria que ela está naquele local por um motivo muito especial.
Sinhozinho veio ao meu encontro uns 15 minutos depois de minha chegada. Vestia um terno preto, sem gravata. Sentou-se na poltrona ao lado do sofá e começamos a conversar. Ele ficou viúvo há mais de cinco anos. As lembranças da mulher revelaram um homem frágil e apaixonado sob a máscara da personalidade pública.
A imensa saudade não se diluiu no tempo. Assim, ele decidiu cuidar pessoalmente do canto da sala que sua mulher mais gostava, coincidentemente o da cristaleira que me encantou. Sobre ela mantém a capa de uma edição especial da revista Cláudia, com nome da assinante em destaque, e um vaso com flores do chuveirinho, planta típica do Cerrado, que ele traz de sua fazenda, perto de Alto Paraíso. A poltrona na qual se sentou é seu refúgio, o lugar preferido da casa para pensar na mulher, 12 anos mais jovem que ele e que partiu antes.
“A imensa saudade não se diluiu no tempo. Assim, ele decidiu cuidar pessoalmente do canto da sala que sua mulher mais gostava, coincidentemente o da cristaleira que me encantou.”
Sinhozinho vive só nesta casa de 480 metros quadrados. Os filhos sugeriram-lhe mudar para um apartamento, mas ele rejeitou a ideia. Diz, confessando certo temor, ser comum pessoas que ficam viúvas morrerem pouco tempo depois do cônjuge nos casos em que se mudam da casa onde construíram uma vida juntos. Ele continua a viver na casa grande para se manter ao lado das lembranças da mulher e, claro, não correr o risco de fazer parte de uma estatística sobre viúvos.
Sinhozinho convidou-me para conhecer sua enorme casa. A sala de jantar com mesa para 10 pessoas e a sala de televisão completam a primeira parte da residência. Um longo corredor dá acesso a dois escritórios – um deles também serve de dormitório –, a uma segunda sala de TV, e a três quartos. O quarto de Sinhozinho é o último do corredor, em frente ao escritório principal. Entre as fotos antigas nas paredes compridas, uma destaca-se: a de suas irmãs ladeadas pelo então senador Pedro Ludovico Teixeira e pelo então presidente da República, Juscelino Kubitschek.
Uma escada na sala de jantar dá acesso à parte inferior da casa, construída aproveitando o desnível do lote em relação à parte frontal. Lá estão cozinha, despensa, áreas de serviço e de lazer e varanda, todos enormes. Ao lado, dois lotes vazios completam a área do imóvel, construído em bairro histórico da capital.
Os quatro carros revelam um pouco sobre a vida de seu proprietário. Uma caminhonete e um carro de passeio na garagem localizada no fundo de um dos lotes falam do tempo presente. O utilitário sai de casa para as viagens à fazenda, administrada por Sinhozinho. A garagem principal na entrada da casa fala do tempo passado. Ela abriga um Landau, com tudo original, e que só teve Sinhozinho como proprietário, e uma Mercedes, adquirida seminova há mais de 20 anos. Carros antigos são sua paixão.
“Os jornais velhos, recortes de artigos, revistas antigas e fotos contam não apenas a história de Sinhozinho, mas parte da história de Goiânia, de Goiás e até mesmo de personalidades relevantes do País.”
Passei a maior parte do tempo naquela casa nos escritórios de Sinhozinho. Sua mulher guardou recortes de jornais com artigos, entrevistas e reportagens sobre a longa carreira do marido. Ela mantinha tudo bem organizado e bem cuidado. Sem ela, os papeis misturam-se uns aos outros e às dezenas de fotos sobre mesas e estantes.
Os jornais velhos, recortes de artigos, revistas antigas e fotos contam não apenas a história de Sinhozinho, mas parte da história de Goiânia, de Goiás e até mesmo de personalidades relevantes do País. Deixei-me levar por ele para aqueles tempos dos papeis amarelecidos. As lembranças não surgem linearmente, elas vão e voltam, como em ziguezague.
As ruas empoeiradas do início de Goiânia, com apenas um “caixote” a destacar-se em sua paisagem (uma referência ao prédio do Grande Hotel em construção na época), as lembranças do enfrentamento do regime militar, nos anos 1960, as dificuldades financeiras do pai comerciante na década de 1950, o relacionamento com governadores dos tempos da ditadura e depois da redemocratização estão compactadas, como se tivessem passado por um desfragmentador de disco. A memória e os fatos que ele testemunhou são os ativos mais valiosos de Sinhozinho, um homem que se divide entre presente e passado.
“A memória e os fatos que ele testemunhou são os ativos mais valiosos de Sinhozinho, um homem que se divide entre presente e passado.”
Os cuidados com seu corpo e sua saúde, a atualização sobre os assuntos de sua atividade profissional, mesmo de longe, mostram um homem que tem expectativa de vida de longo prazo e que não desiste. Ele consulta-se com os médicos (são cinco especialistas) regularmente para controlar pequenos problemas e, desta forma, revelou-me, evitar que virem doenças complexas.
Parou com a academia depois de uma gripe forte, mas tem projetos de voltar. Enquanto isso, faz 20 minutos de alongamento na cama todos os dias antes de levantar-se. Exige cinco frutas em seu café da manhã. Não fica sem uma lima, a comum ou a lima-da-pérsia, conhecida como lima da Índia, diariamente. A lima substituiu o omeprazol, remédio popular para estômago, em sua vida. Gaba-se de manter o mesmo peso há dois anos. Usa ternos bem cortados que encomenda em uma alfaiataria no Rio de Janeiro. Abre o paletó para mostrar a etiqueta. Sinhozinho encomendou um terno novo há uma semana, por R$ 6 mil.
“Aprendi a despir-me de preconceitos para ouvir um homem sobre quem já tinha uma opinião formada; aprendi a ouvir sem julgar; a escutar o que ele dizia e o que não dizia por meio de seus silêncios, dos sorrisos, das exclamações e, principalmente, o que seu olhar me revelava.”
Com planos de reformar a casa, de participar da chapa de sua associação profissional, de usar terno novo, Sinhozinho pensa no futuro. O personagem da minha reportagem revelou-me mais do que as importantes informações sobre o assunto da minha pesquisa. Ele mostrou-me que erguer-se diante das quedas que a vida nos impõe; prevenir-se diante dos desgastes naturais do tempo; aproveitar as coisas boas que o dinheiro (que para ele nunca foi problema, é bom frisar) pode comprar ou as coisas que a vida nos oferece gratuitamente e, sobretudo, manter o passo sempre em frente são características de sobreviventes.
A descoberta do ser humano Sinhozinho me proporcionou duas horas de conversa agradáveis e dias de reflexão sobre o que ouvi a respeito da vida e de sua experiência, a ponto de me provocar a escrever este texto. Aprendi a despir-me de preconceitos para ouvir um homem sobre quem já tinha uma opinião formada; aprendi a ouvir sem julgar; a escutar o que ele dizia e o que não dizia por meio de seus silêncios, dos sorrisos, das exclamações e, principalmente, o que seu olhar me revelava. Esse encontro humanizou a jornalista em mim e certamente humanizou meu personagem.
Parabéns pelo belo texto. Sensível, simples e envolvente
Menina, ganhei o dia hoje lendo esta matéria sobre o Sr. Sinhozinho. Fez eu lembrar de quando cheguei em Goiânia em Janeiro de 1959 com meus 19 anos, onde ali no Grande Hotel foi meu primeiro emprego. Foi apenas uns três meses trabalhando a noite na recepção e carregando as bagagens dos hospedes subindo para os andares superiores com brutas malas. Foi o melhor emprego que consegui em Goiânia, porque os demais que conseguia era de servente de pedreiro, visto que havia muitas construções na época. Lembro que na minha chegada aqui em Goiânia eu não podia escolher serviços e o primeiro que encontrei foi na construção do prédio da Celg na av. Anhanguera no Setor Coimbra. No momento foi uma felicidade ter conseguido o emprego, mas depois que o encarregado viu minhas mãos me dispensou porque eu não aguentaria a jornada de trabalho com as ferramentas que eram utilizadas na obra. Foi ai que parti para um emprego melhor que foi no Grande Hotel, onde conheci várias pessoas importantes e ao que parece e lembro, este senhor da reportagem foi um deles.
Eurânio BATISTA Alves.
Lindo texto! Detalhes revelados demonstram muita sensibilidade e humanismo,
Parabéns
Bjs
Lúcia Vania
Narrativa preciosa, mostrando seu lado dotado de sentimentos nobres, compassivo, generoso e, acima de tudo, um olhar voltado para detalhes, talvez desapercebidos por outros, da vida do Sinhozinho, de sua residência, seus costumes e crenças, sua vontade e determinação.
Excelente.
Mais uma vez, minha admiração.
Cileide
Um dos seus melhores textos.
Assinala uma visão com perspectiva ampla e ao mesmo tempo profunda.
Excelente!
Cileide, sou muito pequeno para fazer um comentário sobre um texto de sua autoria. Entretanto quero dizer que gostaria muito de saber
quem é o personagem. Na minha trajetória de bancário em Goiania conheci muita gente, mas não consegui decifrar este enigma. Gostei
muito da matéria, é diferente e atrativa.
Parabéns eabraços
Edmo
Que maravilha, Cileide. Duas humanizações filtradas em dois olhares – o físico e o espiritual. Parabéns pelo lindo texto!
Lindo texto. Mas faltou o nome do sinhozinho.
Gostaria muito de saber o nome do “sinhozinho” mas não quero dar margens às minhas especulações pois, segundo um dito popular “a curiosidade mata” e não querendo ser “assassinado” por enquanto, fico por aqui.
Parabéns, Cileide pela matéria.