Um jagunço que atravessou os sertões hostis de um Brasil profundo dizia que tudo em volta era um eterno risco, que andar pela vida era por demais de perigoso, que nada nessa existência é tranquilo, nada vem sem muito esforço, nada é confiável. Tudo está por um triz, por um segundo, por um nada, tudo pronto a se transformar, a se refazer traumaticamente. A vida é assim, esfria e esquenta, também dizia aquele personagem. E há infortúnios no caminho, cicatrizes são deixadas, lembranças felizes e doloridas.
Era Riobaldo, o Ulisses de Guimarães Rosa em seu livro-ápice Grande Sertão: Veredas, quem ensinava a um interlocutor letrado que o ouve atentamente em sua narrativa sobre andanças homéricas pelo sertão. Mas não tomo essa criação magistral do autor mineiro para falar exatamente dele e sim da provocação que ele nos coloca com sua narração que mistura valentia, violência, amores proibidos e episódios sobrenaturais. Ele nos chama a pensar se aproveitamos os riscos que corremos em nossas travessias.
“Nesses momentos em que falamos de renascimentos, como é o caso da Páscoa, do Natal, do Ano Novo, do nosso próprio aniversário, costumamos fazer balanços, medir perdas e ganhos, avanços e recuos, conquistas e derrotas.”
Nesses momentos em que falamos de renascimentos, como é o caso da Páscoa, do Natal, do Ano Novo, do nosso próprio aniversário, costumamos fazer balanços, medir perdas e ganhos, avanços e recuos, conquistas e derrotas. E nunca teremos uma avaliação totalmente positiva, sempre haverá um porém, um senão, uma frustração com que teremos de lidar. E há riscos que aceitamos ou não. É nesse processo que reside o maior dos desafios, o obstáculo a superar: reconhecer que viver é assim.
O mundo está muito esquisito, cheio de ódio e martírio, repleto de desassossego e insegurança quanto a um futuro que se desenha cada vez mais sombrio. Enquanto isso lidamos com um presente de desentendimentos, de incompreensão e intolerância, em que é cada vez mais complicado manter a serenidade, o equilíbrio, a boa convivência com que se quer – ou precisa. Ficou arriscado encontrar mediações sensatas, não se deixar intoxicar pelos maus sentimentos alheios, combater nossos piores instintos.
“Tentações, como aquela a que Riobaldo foi exposto nas Veredas Mortas em seu enigmático encontro com o Diabo, estão por aí para nos tirar do prumo, para nos deixar menos amistosos, para nos enfurecer diante dos problemas, dos imprevistos, da resposta mal dada ou recebida, da ausência de gentileza e civilidade.”
Mas se não fizermos isso, cairemos numa barbárie que pode não ser o que pensamos, mas a que somos levados a incorrer. Tentações, como aquela a que Riobaldo foi exposto nas Veredas Mortas em seu enigmático encontro com o Diabo, estão por aí para nos tirar do prumo, para nos deixar menos amistosos, para nos enfurecer diante dos problemas, dos imprevistos, da resposta mal dada ou recebida, da ausência de gentileza e civilidade. É fácil cair nesse ciclo perverso, que nos nubla a existência.
E assim a vida vai ficando mais árida – assim como o sertão roseano – e mais perigosa – da mesma forma como as emboscadas de pistoleiros ou as traições de companheiros de que os jagunços eram alvos. Nossa jornada se dá entre esses percalços, surpresas e decepções, tombos que nos deixam tontos, enfim, riscos. São baques que ocorrem por mera distração, porque não conseguimos fazer as leituras corretas da realidade, por inocência, ingenuidade, imperícia. Erramos feio com os outros e com nós mesmos.
Pedir ajuda é fundamental, mas amadurecer os próprios desejos também é algo necessário. Grandes expectativas não podem nos servir como utopias que irão se tornar enormes vazios. Infelizmente, essa tem sido a lógica a que aderimos sem perceber o quanto ela nos deprime, nos faz mal, nos coloca em oposição com nossa própria alegria, inviabilizando-a. Tristeza e culpa eram sentimentos muito fortes em Riobaldo e por isso ele tentava se convencer que não os possuía.
“Tudo parece muito maior, os problemas se avolumam e a existência fica pesada, enlutada, cinza. Nessas horas, precisamos renascer, fazer nossa Páscoa, inaugurar de fato um novo momento, uma outra fase, um período em que possamos nos reinventar. Temos que assumir novos riscos.”
Essa batalha infindável que a vida, perigosa e cheia de testes o tempo todo, nos coloca é o fosso que tantas vezes não nos sentimos capazes de superar. Tudo parece muito maior, os problemas se avolumam e a existência fica pesada, enlutada, cinza. Nessas horas, precisamos renascer, fazer nossa Páscoa, inaugurar de fato um novo momento, uma outra fase, um período em que possamos nos reinventar. Temos que assumir novos riscos. Fácil não é não, seu doutor, diria Riobaldo. Mas viver é assim: perigoso.
Excelente reflexão, professor.
Obrigada!
Cida