Alô, alô, Realengo! Aquele abraço! Alô torcida do Flamengo! Aquele abraço! O Rio de Janeiro, berço do samba e da bossa nova, laboratório do Cinema Novo e da revolução de costumes no Brasil, a cidade que viu Carmen Miranda ser alçada para o mundo, de Tom e Vinicius e sua Garota de Ipanema, das escolas de samba que nasceram nos morros e desceram para o coração de todos, do Cacique de Ramos, do Copacabana Palace, do Cassino da Urca, um dos cartões-postais do mundo.
O Rio de Janeiro sempre teve tesouros e também misérias, mas nesses paradoxos tão evidentes mesmo a olho nu, a antiga capital federal criou uma identidade, para o bem e para o mal. Sua absurda desigualdade social, o racismo que se manifesta no tratamento dado a negros e brancos, a separação – emblematizada por seus famosos túneis – entre zonas Norte e Sul, nunca impediram que algo vivo vibrasse em suas entranhas e, muito frequentemente, o resultado era um presente para todos nós.
Isso tem mudado nos últimos tempos. Governantes incompetentes o Rio de Janeiro – e isso não é exclusividade dos cariocas – sempre teve. A prova são comunidades desassistidas em todos os sentidos. Pessoas apinhadas em morros sem segurança, sem saneamento básico, sem escolas decentes, sem serviços de saúde eficientes. Crianças que têm seu futuro comprometido por traficantes e, agora, milicianos, envolvidas em guerras cujas principais vítimas são elas próprias.
Apesar de Garotinhos, Cabrais e Pezões – e o termo é exatamente esse, “apesar deles” –, o Rio ainda mantinha sua mística, continuava a produzir cultura, a propor debates, a ser vanguarda – seja com o topless nas praias, seja com a forma como lidava com mais tranquilidade com a diversidade sexual em suas boates, em suas areias, em sua vida cotidiana. Isso vem mudando de maneira preocupante e triste. Aquela cidade cantada por tantos mestres de nossa música, perdeu muito de sua beleza interior.
Os últimos acontecimentos por lá mancharam a tradição carioca de ser mais aberta às ideias, de ser um centro de difusão de cultura e liberdade. O prefeito Marcelo Crivella resolveu fazer proselitismo político com sua plataforma moral-religiosa para tentar censurar uma obra literária na Bienal do Livro do Rio, um dos eventos mais bacanas do calendário carioca, onde a criançada tem a chance efetiva de ter contato direto com a cultura e aprender sobre sua importância.
“O Rio ainda mantinha sua mística, continuava a produzir cultura, a propor debates, a ser vanguarda – seja com o topless nas praias, seja com a forma como lidava com mais tranquilidade com a diversidade sexual em suas boates, em suas areias, em sua vida cotidiana. Isso vem mudando de maneira preocupante e triste.”
Nesse mesmo sentido, terreiros de umbanda e outras manifestações de religiões afro, uma das marcas identitárias do Rio de Janeiro há mais de 200 anos, quando o porto da cidade foi a principal porta de entrada de escravos africanos vítimas do tráfico para as Américas, sofreram atentados. Esse sincretismo é um dos grandes patrimônios humanos do Brasil e o Rio é uma cidade em que isso se dá de forma orgânica. Mas a intolerância tem tentado destruir essa conquista, lindamente descrita por João do Rio em suas reportagens reunidas no antológico As Religiões no Rio.
O que mais entristece é que esses casos não são acidentais. Eles observam uma política que tenta implementar padrões morais reacionários na marra, na gênese de um perigoso fundamentalismo baseado na fé. Isso se mostra nas expressões de preconceito que são incentivadas por governantes que, no caso do Rio Janeiro, tornou-se uma regra. O prefeito quer proibir livros em nome da moral e dos bons costumes, mas ele, na hierarquia, é o menos poderoso dos homens públicos a incitar o mal.
O governador Wilson Witzel é o tipo de homem que, atrás de um discurso que o tempo todo cita a Bíblia e parece fazer pregações em um púlpito alucinado, tenta justificar suas ações mais atrozes. O resultado de sua “política de segurança” fez com que o caldo de violência, já tão assustador da cidade, se transformasse em uma “guerra” em que não há o menor constrangimento em se colocar a população civil na linha de tiro. Com isso, metralham-se escolas e fuzilam-se crianças.
“O Rio de Janeiro que é símbolo de uma sensualidade tropical, em que os corpos de todos os formatos, pesos e idades convivem sem maiores traumas, no Leblon ou no Piscinão de Ramos.”
Para completar, o Rio de Janeiro nos deu o presidente mais preconceituoso e intolerante de nossa história. Jair Bolsonaro descarta as pessoas que não entrem em seus padrões, desmerecendo-as como se fossem problemas, como se não tivessem direitos a serem respeitados, como se tratassem de aberrações. E ele ainda tem a pachorra de dizer que não é ideológico, que é cristão, que é mito. Nascido no interior paulista, o ex-capitão fez carreira política no Rio e lá criou uma triste base eleitoral.
É muito estranho ver o Rio de Janeiro produzir esses seres medievais. Um amigo meu, quando se mudou para o Rio de Janeiro, lá no início dos anos 2000, comentou comigo uma vez: “Quando cheguei aqui, estranhei muito. Eu ia para o trabalho de ônibus e via nas calçadas, nas praias, aqueles velhinhos andando só de sunga, as velhinhas de biquíni bebendo água de coco.” Com o tempo, ele se acostumou e achou bacana esse espírito libertário, independente da idade. Era o Rio de Janeiro de sempre.
Um Rio de Janeiro que é símbolo de uma sensualidade tropical, em que os corpos de todos os formatos, pesos e idades convivem sem maiores traumas, no Leblon ou no Piscinão de Ramos. Que os Meninos do Rio, como cantou Caetano Veloso, continuem a pegar suas ondas; que as Garotas de Ipanema, lindas e cheias de graça, continuem a inspirar; que os gays continuem a se reunir na praia junto com os heteros; que essa cor e sedução, esse jeito especial de ver e se mostrar não minguem.
Claro que o Rio não se perdeu entre aproveitadores da fé. Ainda há muita resistência à censura e ao moralismo absurdo que quer reinar nessa cidade de predicados incríveis. Os bailes funk continuam a acontecer, as rodas de samba estão vivas, o Maracanã ainda enche nos jogos do Flamengo, as escolas de samba levam para a Sapucaí enredos políticos e críticos. Ainda bem que esses espaços continuam a fazer os contrapontos necessários que garantem algum nível de democracia e civilidade.
Nos barracos da Rocinha, nos botecos da Tijuca, nos calçadões de Copacabana e Ipanema, na ostentação da Barra da Tijuca, no samba da Mangueira, na vibração do Maraca, no encantamento do Cristo Redentor e do Pão de Açúcar, na grandeza da Baía de Guanabara, o Rio de Janeiro continua lindo, mas passa por provações cada vez maiores. Que não perca toda sua beleza no poder de bandidos e milicianos, de malucos religiosos, de uma visão sanguinária. Que a sensualidade e a liberdade jamais abandonem o Rio. Tomara que a vida, de ardor e calor, vença o gelo do horror.