“Faíscas no palco! Faíscas!” Maria Bethânia não esconde o orgulho de contar que esta foi a reação de uma sempre enigmática Clarice Lispector após a estreia do primeiro show em que a cantora baiana entoava, no palco, trechos da obra da escritora brasileira nascida na Ucrânia. Os olhos da veterana intérprete, sob a moldura de sua vasta cabeleira grisalha, brilham, faíscam ao falar da autora. Ao lado, um não menos embevecido Caetano Veloso, o irmão mais velho que lhe deu a primeira página de Clarice Lispector para ler.
A cena compôs o primeiro programa de uma série de quatro, em cartaz todos os domingos deste mês de julho, às 22 horas, no Canal Arte 1. A TV fechada, como é sua tradição, aposta mais uma vez na quebra de tabus. Intitulada Poesia e Prosa com Maria Bethânia, a produção, capitaneada pela Cine Group, estreou, primorosamente, mostrando que um programa sobre literatura é mais que bem-vindo: é necessário. Batendo um papo informal e sem muito roteiro com a biógrafa de Clarice, a professora Nádia Gotlib, os irmãos Bethânia e Caetano nos revelam uma outra escritora. A Clarice deles.
Os homenageados
Clarice Lispector (1920-1977) – Considerada a maior escritora brasileira do século 20, ela nasceu na Ucrânia, mas veio ainda bebê para o Brasil, com sua família, fugindo de uma Europa em convulsão. Suas principais obras são os romances A Hora da Estrela, Perto do Coração Selvagem e Paixão Segundo G.H. e os volumes de contos Legião Estrangeira e Laços de Família.
As risadas, as histórias engraçadas, as lembranças afetivas se mesclam com os momentos em que Bethânia, a intérprete maior, toma trechos de crônicas e contos de Clarice e lhes empresta sua voz poderosa, seu olhar majestoso, sua entonação peculiar. Tudo muito leve, mas ao mesmo tempo denso. O respeito que merece a obra de Clarice é observado, mas com a preocupação de não torná-la hostil, de não fechá-la em um castelo inexpugnável, a que só os iniciados teriam acesso.
Em mais de um momento, Gotlib enfatiza os emaranhados que constituem roteiros e personagens de Clarice. O contraponto é Caetano, convidando a lê-la com o sentimento, nem tanto com a razão dos formalismos literários. Ele entendeu Clarice? Isso não importa senão para a crítica. O que interessa é que ela o arrebatou, o levou a outras dimensões de imaginação, influenciou seu trabalho e o fez ensinar a irmã caçula a também ler Clarice. Ela, por sua vez, levou-a para o palco mais de uma vez e lhe dedica o amor que deve se estabelecer entre o leitor e sua autora de cabeceira.
Os homenageados
Guimarães Rosa (1908-1967) – Médico e diplomata mineiro, reinventou o romance brasileiro no século passado, sendo posto no mesmo nível de genialidade de Machado de Assis. Suas principais obras são o monumental romance Grande Sertão: Veredas e a trilogia que forma a obra Corpo de Baile. A linguagem e o imaginário do sertão ganharam universalidade com seus trabalhos.
Ficamos sabendo no programa, entre outras curiosidades, que Clarice ia assistir aos ensaios de Bethânia no final dos anos 1960 e dava sugestões sobre como sua obra poderia ser melhor aproveitada ao diretor Fauzi Arap, o mentor da concretização desse encontro. É possível também vislumbrar um pouco melhor a complexa personalidade de Clarice, tão marcada por um olhar perfurante ou pela imagem que deixou em sua última entrevista, em que se mostra uma mulher nada sorridente, já sinalizando a melancolia do fim, sem muita paciência para trivialidades.
Nas duas principais biografias da escritora, a de Nádia Gotlib e a escrita pelo norte-americano Benjamin Moser, um episódio é descrito rapidamente, mas ganha sua devida ênfase no programa apresentado por Bethânia. É o do encontro entre Clarice e Guimarães Rosa, de quem ela era uma fã ardorosa. Eles foram contemporâneos e chegaram a lançar livros simultaneamente, dividindo a atenção de público e crítica. Certa vez, em uma reunião social no Rio de Janeiro, eles se viram um diante do outro. Clarice disse a Rosa que admirava profundamente sua literatura. Ao que Rosa respondeu: “Clarice, eu não leio você para literatura, mas para a vida”.
Era o criador de Riobaldo, de Diadorim, de Augusto Matraga traduzindo, mais uma vez, o que tanta gente pensa e sente com mínimas e poéticas palavras! Lindo demais! Breve narrativa que não deixa de servir como ponte para o programa deste próximo domingo, em que o homenageado será o próprio Guimarães Rosa. Confira uma pequena prévia aqui:
Depois virão os dedicados aos poetas Castro Alves e João Cabral de Melo Neto. Neste último, Bethânia terá ao seu lado ninguém menos que Chico Buarque, que musicou o antológico poema do escritor pernambucano, Morte e Vida Severina. O que fica patente é que carecemos de projetos assim. Ele é restrito, atende a um nicho, não ganha a visibilidade da TV aberta, mais preocupada em encher nossos domingos com jornalismo-espetáculo, com programas de auditório bizarros, com modorrentas transmissões de futebol? Sim, mas poderia ser diferente.
Os homenageados
Castro Alves (1847-1871) – O autor baiano é um dos mais conhecidos representantes da geração romântica brasileira, que dominou a literatura nacional no século 19. Ele se diferenciou de seus pares e contemporâneos, porém, por defender bandeiras libertárias, como a abolição da escravatura. Um de seus poemas mais conhecidos é O Navio Negreiro. Seu único livro é Espumas Flutuantes.
Bethânia e a literatura que nos traz por meio de seus autores do coração são oásis em um deserto de irreflexão. E a literatura, coitada, ultimamente só merece algum espaço nas grandes emissoras de TV quando morre um escritor importante ou quando fenômenos saem das prateleiras para a telona do cinema, mesmo que a qualidade de tais obras seja claramente discutível. Falar de boa literatura e exercê-la em público é estar na contramão da agenda, criar uma barricada de resistência ao pueril, ao efêmero, ao desimportante.
Os homenageados
João Cabral de Melo Neto (1920-1999) – Maior expoente da chamada Geração de 45, que redefiniu o Modernismo brasileiro, o poeta pernambucano manteve em paralelo as carreiras de diplomata e escritor. Seus versos são marcados pela economia formal e pela temática social. Seu poema mais conhecido é Morte e Vida Severina. Entre seus livros estão Cão sem Plumas e Pedra do Sono.
Como é bom ter uma Maria Bethânia, que emprega seu prestígio para nos brindar com um produto como este programa. Literatura sim! Por que não? Por que não rompermos com essa lógica que só valoriza o perecível, o que está na moda, o que não vinga, o que não fica? Por que não estabelecermos outras prioridades? Por que não ler Clarice, Guimarães Rosa “para a vida”? Por que não?