Outubro, 2016
Largo dos Leões. Rio de Janeiro. Humaitá. Assaltaram o bar Palhinha ontem. Chegaram dois caras de moto lá, segundo facebook da vítima que perdeu o celular. E eu mergulhando agradecido no mar.
Morreu uma menina atropelada por um ônibus na São Clemente. Que triste. Passei ali e vi a bicicleta no chão. Era uma bicicleta da prefeitura, já sem a marca do Itaú. A ciclovia fica quarteirões acima. O ônibus partiu em fuga. Imagino o pânico do motorista. Inimaginável a dor da família.
Em Petrópolis teve a gangue da marreta. Esvaziaram a loja à noite. Assaltos para todo lado. Conflitos. Preocupação, recessão. Missão impossível para bandidos e polícia. Os bandidos fugiram para os arredores, mas já querem voltar em cima da UPP. Com a carestia, piorou.
O secretário de Segurança Beltrame jogou a toalha e falou em revezamento. Dez anos sem sossego, mano. Não acaba nunca, ele falou, como se fosse irremovível. Sendo ele gaúcho, foi valente, mas o buraco é mais embaixo.
Enquanto o cara que tem a arma for o mesmo que vende as drogas não tem como resolver. Vendem maconha malhada com não sei o quê: e a maconha medicinal, que o sujeito pode plantar em casa, é proibida. O crack é problema social gravíssimo e o sistema prisional indizível e inaceitável.
O cigarro, maior assassino que as guerras, vende em todo lugar e o Estado assim arrecada fortunas empenhando a saúde. O filme O Informante, com Al Pacino e Russell Crowe, já levou ao mundo a história verídica do químico nos EUA que testemunhou avisando que fazem a nicotina chegar mais rápido ao cérebro. Assim viciam-se pré-adolescentes. Onde o fumo do pajé?
O diesel exalado pelos caminhões e utilitários na roça vem desregulado das partes de poluição, muito maior que a permitida no Primeiro Mundo. Fumaça escura dos canos, em cima dos outros, que nas cidades soma-se a toda a sorte de poluição e lixo. Quase não vejo coleta seletiva, apesar da política nacional de resíduos sólidos.
O Brasil é o país do mundo onde os bancos lucram na recessão, com taxas altas de juros extorsivos sobre juros, usurae usurarum, anatocismo já proibido em Roma. Aceito pelo direito civil, como aceitaram a escravidão.
O capitalismo traz a concentração nefasta de grandes conglomerados de agricultura e farmácia que são a expressão de um modelo falido, renascido na monocultura transgênica de grande extensão. Haja aspirina. Felizmente o capitalismo trouxe também as leis antitruste. No Brasil cabe tudo. Cidade. Comunidade. Agricultura. Área de preservação. Terra indígena. Difícil é conter o avanço. Muita gente morando nas ruas.
No Festival do Rio, a fuga foi pelo Vermelho Russo, do Charly Braun, que perseguiu as minas indo mergulhar no teatro da terra de Tolstói e Stravinsky. Charly Braun é parente. No filme dele brilham as mulheres e tem o Michel Melamed, que confessa um tanto fatalista o seu espelho distorcido. Sábio é o professor russo. Ele diz Stanislavsky às atrizes: atuar é sair de si e viver a vida de outra pessoa. Na aula, elas encenam Tchecov; no filme são elas mesmas. Mas aí é outra estória.
Quando os socialistas equilibrarem a dimensão social e a individual, uma que busque a saúde física e mental, quem sabe não aparece um caminho. Vamos baixar os dogmas e falar sério. Rever a história do cânhamo. E repensar a teta. O Estado necessário. Caminho do meio. Se mantivermos este paradigma parado, haja compensação ambiental e bolsa-família. Viva o incentivo à mobilidade social e a liberdade que respeita a convivência social.
A minha prima Isabel Taunay trouxe, como produtora executiva, O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues, um filme luso-franco-brasileiro. Parece que Locarno premiou o diretor, Tribeca gostou, alguém achou erótico. A película começa naturalista e bela seguindo as cegonhas negras da fronteira portuguesa com a Espanha, depois vira escatologia misógina e bufa, numa insurgente rebeldia contra a Igreja que tanto martelou as cabeças dos nossos parentes lusos.
Nessa parte, fico com as mulheres. Mas não aquelas castradoras do filme. E sim com as da praia, como a minha priminha linda e seus óculos de John Lennon, formada em cinema em Portugal. Ainda por cima filha da Malu. Como somos abençoados de gente no Rio de Janeiro! Pois, melhor dizendo, cada um com a sua. E elas é que mandam, obedece quem tem juízo. Mas sem interferir na segurança.
No filme restaurado É um Caso de Polícia, de Carla Civelli sobre argumento de Dias Gomes, onde debuta Glauce Rocha, filmado na cidade de 1959, vi um Rio agora já arcaico em face da confusão atual. Nas lonjuras de Ipanema e São Conrado, um filme policial comédia naïf, retrato de uma época antes de ter nascido. Disseram houve um parecer burocrático contra a restauração porque desconheciam o currículo da diretora, que só fundou a novela brasileira e restaurou a qualidade do som. Desburocratizado, foi o último trabalho de marcação de luz do fotógrafo Mário Carneiro, gênio da raça.
O curta-metragem Antonieta, de Flávia Person, resgata a história da professora negra que tornou-se a primeira mulher brasileira a eleger-se deputada estadual em 1935, quando ainda não se admitiam as mulheres nos cursos superiores. E foi em Florianópolis, terra do poeta Cruz e Sousa, que rompeu os mares escravocratas rumo ao simbolismo. Que exemplo de mulher e de luta em ambiente racista e hostil contra as mulheres. Antonieta de Barros, personificação da menina que vira mulher de verdade.
Foi O Jabuti e a Anta, de Eliza Capai, o documentário urgente e necessário coproduzido pelo Greenpeace. Sensível, sincero, exato, comovente, retrata a viagem da equipe de um grupo de mulheres mais dois homens em um boat movie nos rios Xingu, Tapajós e Ene, este na Amazônia peruana, ameaçados pelas hidrelétricas, que são megaobras que vão alimentar bolsos políticos. Para quem acha que o governo anterior, que parou de pagar a contribuição à OEA ao ser lá denunciado em virtude de Belo Monte, teve alguma coisa de amigo do povo. Da natureza, nunca almejou ser. Obra faraônica feita, progresso da desilusão. Em Belo Monte, o cataclisma alertado da injustiça e ineficiência econômica ecológica social e energética atropelando a vida das pessoas e matando os peixes.
Insanidade em tempo de seca e energia solar. Diz o ditado antigo da política: jabuti em cima de árvore é enchente ou mão de gente. Para os Munduruku do Tapajós, a Anta simboliza o governo-hidrelétrica, por ser alta, mas o tracajá pode vencê-la. Venceu por enquanto, até que ela volte. No Peru, Ruth Buendía Ashaninka conseguiu liderar a vitória contra complexo hidrelétrico no Rio Ene. No documentário, a sua coragem ilumina. Que orgulho dessas mulheres todas. Mas não do jabuti em cima da árvore que virou governo, para construir Anta.
Já a anta verdadeira é um animal sublime. Se tem uma cena rara que vi foi a anta comendo manga no fim de tarde da Chapada dos Veadeiros ? brava Chapada, sempre tendo de repelir o avanço do agente laranja, que sustenta governo irresponsável. Cumpre equilibrar os interesses e preservar a vida. Ignacy Sachs já demonstrou que a sustentabilidade tem de abarcar as várias dimensões.
Eu estou vendo se decifro o Edgar Morin do cataclisma. Tempos estranhos, antropocêntricos. Podiam aproveitar que estão prendendo peixe grande para soltar muita gente humilde detida indevidamente, numa visão de processo regenerativo rurbano. Humanidade gera humanidade. Tenho um amigo engajado nisso, na linha psicoanalítica. Urge educação e os direitos humanos que só vêm na liberdade, não na esteira de Mao Tse Tung, quando era proibido ouvir Bach.
Saudades dos meus vinte anos de literatura heroica. Um dia vou contar, como fez o Joyce antes de ficar ilegível. Hoje, o tempo para os russos anda escasso. Aquele velho livro do Dostoiévski segue bem guardado. Vou mais para a Rócia na serra, onde ruço é neblina, ouço Manuel Barrueco tocando João Sebastião e tenho novas que o clima mundial anda ficando desértico.
Assim, quero louvar as hortas e o caminho suave da natureza e da saúde, da família ampliada que preserva o cidadão. O respeito aos rios, a cosmovisão indígena, a transcendência das mulheres e o sonho utópico tolstoiano, no ocaso de sua vida. O local e o global se comunicam: gentileza gera gentileza.