Depois de 23 anos, o ator Guido Campos Correa encerra sua trilogia sobre o sertão com seu mais novo espetáculo, SertãoHamlet. A trilogia foi iniciada com A Terceira Margem do Rio, adaptação do texto de Guimarães Rosa, nos anos 1990, e em seguida Boi, peça baseada na obra do goiano Miguel Jorge. As duas peças deram ao artista a oportunidade de viajar por todo o Brasil e exterior e conquistar prêmios em festivais.
O novo espetáculo será apresentado neste sábado, dia 3, às 20 horas, no Centro Cultural UFG, na Praça Universitária. Dias 16, 17 e 18 deste mês, o ator estará no palco da Cia. Novo Ato, no Setor Crimeia Leste, às 20 horas.
Para produzir SertãoHamlet, Guido Campos Correa decidiu fazer uma residência artística no interior do Ceará. Queria fazer um contraponto entre o cangaceiro Lampião, filho do sertão nordestino, e Hamlet, o príncipe da Dinamarca, personagem criado pelo inglês William Shakespeare.
Não foi tarefa fácil focalizar duas personagens tão díspares e complexas. Lampião liderou um bando de ladrões e assassinos nos anos 1930. Hamlet pertencia à nobreza da Dinamarca, um país nórdico, que nada tem a ver com a aridez do sertão. Ambos têm em comum a trágica morte do pai e o desejo de vingança. Tio de Hamlet, Cláudio matou seu irmão para ocupar o trono e desposar a viúva Gertrudes. Por causa de uma briga de terras no sertão de Pernambuco, o pai de Virgulino Ferreira, o Lampião, acabou assassinado. Revoltado, o filho jurou vingança e virou bandido.
Lampião tornou-se mito na voz dos cantadores de repente e poetas de cordel. O cinema também contribuiu para reforçar a mitologia em torno dele. Obra-prima de Shakespeare, Hamlet é uma das peças mais famosas do bardo inglês, encenada no teatro incontáveis vezes e filmada por atores consagrados. Guido Campos Correa encontrou pontos em comum entre Lampião e Hamlet. Focou na vingança para escrever a dramaturgia de SertãoHamlet, levada ao palco pela Sertão Teatro Infinito Cia.
Antes de entrar em cena, o ator recebe a plateia. Quando todos se acomodam nas cadeiras, fala sobre seu trabalho, a imersão nos dois universos para compor a história. Nos quatro meses que viveu no sertão do Cariri (Crato, Juazeiro do Norte e Nova Olinda), o ator mergulhou fundo na cultura local, rica em religiosidade e folclore, pinçando temas da terra para compor os personagens.
Fortemente influenciada pela figura mítica do Padre Cícero, a religiosidade é um dos pontos fortes da região. Guido explora muito bem o tema inserindo logo no início uma bela cantoria de procissão. Um pequeno altar no meio do palco e um foco de luz ressaltam a imagem de Padre Cícero, santo cultuado pelo povo nordestino. As rezas e os cânticos a Nossa Senhora da Imaculada Conceição ajudam a plateia a entrar no clima do sertão.
Ator de muitos recursos, Guido vai aos poucos assumindo os personagens que pinçou do dia a dia do Cariri. Transita com empenho entre as figuras simplórias de Juvêncio, Edilania, Edmilson e a beata Luíza. Homens e mulheres fortes, rústicos, corajosos vão sendo delineados pelo ator/autor. Recitador de cordel, ator de circo do interior, Juvênio é o primeiro amor de Edilania, jovem sonhadora e ingênua. Juvênio prefere o circo a ficar com ela. Sozinha, se engraça por Edmilson, confia em suas boas intenções. Acaba mal. Edilania é estuprada e denuncia o malfeitor. Ela sofre preconceito da família, dos amigos, acabando na prostituição, fim de tantas mulheres do sertão. Um dos pontos altos da encenação, o ator vive todo drama da cena.
Guido Campos Correa absorveu bem a humanidade dos seus personagens, os conflitos interiores, o cotidiano de uma terra de costumes arraigados. Apegada à religião, a anciã Luíza, velha beata de 94 anos, dá ao ator a oportunidade de mostrar sua potencialidade cênica. Incorpora seus trejeitos, sua fala tremida, o olhar perdido. Vestida como uma santa, Luíza expõe com sabedoria sua longa experiência de vida, alegrias e sofrimentos de uma vida solitária.
A eloquência do texto de Shakespeare fica para a reta final da peça, quando o ator assume o papel de Hamlet. Traz para a cena não só a tragédia de vida do príncipe dinamarquês, mas a situação do Brasil de hoje com suas tantas diferenças, contradições, corrupção política, falta de ética. A dor de Hamlet é a dor de todos.
SertãoHamlet não é o melhor espetáculo de Guido Campos Correa. Com 37 anos de carreira, o ator é adepto dos monólogos, das longas temporadas. Viveu grandes momentos em A Terceira Margem do Rio, sob a direção de Henrique Rodovalho, e Boi, dirigido por Hugo Rodas. Dessa vez preferiu escrever, dirigir e atuar, o que não deixa de ser interessante, pois tem a chance de explorar outros potenciais. Na primeira experiência, cometeu alguns excessos que um bom diretor poderia suprimir sem comprometer o resultado final.
Com recursos da Lei Municipal de Cultura, Guido Campos Correa cercou-se de bons profissionais para compor a ficha técnica de SertãoHamlet. Cuidou ele próprio do figurino, confeccionado pelas costureiras do sertão, adquiriu os adereços (gibão de couro, chapéus, sapatos, alpercatas) de mestre Expedito Seleiro, famoso pelas suas criações que lembram os tempos do cangaço, o rosário e o reisado de mestre Aldenir. Guido tomou emprestado das senhorinhas rezadeiras orações devocionais e canções. Visualmente o efeito é encantador.
Marci Dornelas assina a produção, Roosevelt Saavedra, a técnica de luz e João Melo, a técnica de som. A trilha sonora vai de Diana, Luiz Gonzaga, passa por David Bowie até Rollings Stones.
Serviço
Espetáculo: SertãoHamlet
Autoria, direção e atuação: Guido Campos Correa
Data: Sábado, dia 3/12
Horário: 20 horas
Local: Centro Cultural UFG (Av. Universitária, nº 1533, St. Universitário. Telefone: 3209-6251)
Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)
*A peça estará em cartaz nos dias 16, 17 e 18/12, às 20 horas, no Espaço Cultural da Cia. Novo Ato – Rua Dr.Sebastião Fleury, Qd. 24, Lt.18, Setor Crimeia Leste. Telefone: 3203-5507. Ingressos: R$ 20 (inteira) e R$ 10 (meia)