Na lida diária da fazenda no interior de Goiás, no início da década de 1970, o trabalho não poupava ninguém, nem mesmo as crianças. Entre elas, uma garotinha de 5 anos, que ajudava a família na produção diária de queijos. As moscas incomodavam, o soro da coalhada escorria pelos braços e ela precisava manter o equilíbrio em cima de um toco para alcançar a tábua onde ficavam as fôrmas. Mas nada tirava a concentração da menina na tarefa de compactar e dessorar a massa sob suas mãozinhas mornas, na forminha que a mãe havia destinado especialmente a ela. E muito menos o prazer de ver suas digitais impressas naquela superfície branca e macia, como se fossem a sua assinatura.
Um salto no tempo, para fevereiro de 2017. O ambiente não é mais a roça, e sim a cozinha de um conhecido restaurante no Setor Marista, em Goiânia. A menina ganhou os traços da mulher, porém o semblante exibe a mesma concentração, por momentos inteiramente alheio ao corre-corre dos empregados durante o almoço do sábado. Enquanto ela vai montando com mãos ágeis as saladas que serão servidas de entrada, as tiras de presunto de parma dispostas delicadamente e o arremate final com uma salpicada de sementes de chia em cada prato também podem ser vistos como uma assinatura daquela que é hoje uma respeitada chef no circuito gastronômico da capital, referência inquestionável quando se trata da cozinha portuguesa.
Um longo e tortuoso caminho precisou ser percorrido, no entanto, antes que a menininha, cuja iniciação na arte da culinária foi com o árduo aprendizado de fazer queijos na fazenda da família, se tornasse a reconhecida chef Edvânia Nogueira, do Porto Cave – Adega e Restaurante. Uma trajetória que inclui um trabalho de décadas na área da Educação, três filhos, um casamento desfeito e um novo amor já na maturidade que uniria os destinos de uma professora nascida em Divinópolis, próximo da divisa de Goiás com a Bahia, e de um comerciante da região litorânea do Porto, em Portugal.
Boa na cozinha, como se diz em Goiás, ela sempre foi. “Tudo que a Edvânia põe a mão, fica bom”, costumava dizer sua mãe, Doracy Neres de Souza, desde quando a filha – a terceira de seis irmãos (três mulheres e três homens) – começou a ensaiar seus primeiros movimentos entre o fogão e as panelas. Nesse terreno, o veredicto de dona Doracy é difícil de ser contestado, já que ela própria é uma cozinheira de mão cheia. Mas Edvânia, por muito tempo, preferiu reservar os seus dotes culinários para a família e os amigos mais chegados. Sua primeira opção profissional foi o magistério: trabalhou como professora concursada da regional de Arraias, no município de Divinópolis,por quatro anos, formou-se em Pedagogia pela UFG em 1993, onde foi professora substituta, e desenvolveu vários projetos de educação infantil a serviço do MEC, como consultora. Ainda hoje, atua na área, como supervisora de CMEIs da rede municipal em Goiânia.
Aos 36 anos, quando cursava um mestrado – já separada do primeiro marido, com quem fora casada por 18 anos, e mãe de três rapazes, Diego, João Paulo e Igor –, Edvânia conheceu José Pedro Martins dos Santos, um empresário português que estava em Goiás a passeio. De início, houve apenas uma troca descompromissada de endereços de e-mail, mas a conversa virtual que mantiveram em seguida revelou várias afinidades, entre elas a coincidência de terem nascido no mesmo mês e ano e quase no mesmo dia – ela no dia 25 e ele no dia 28 de junho de 1965. Um ano depois, período em que José Pedro voltou ao Brasil outras sete vezes e Edvânia também viajou para Portugal, eles se casaram e inauguram em Goiânia, em dezembro de 2003, a Adega Porto Cave.
“Eu digo sempre que a Adega é um projeto de amor: amor pela comida, de um pelo outro”, afirma Edvânia sobre o restaurante que ela e José Pedro comandam em Goiânia, sempre no mesmo endereço, há quase 14 anos. O projeto inicial, entretanto, não tinha como foco a cozinha. A ideia era ter uma espécie de sala de visitas para a degustação dos vinhos comercializados por José Pedro, por meio de sua empresa Sabores de Portugal, acompanhados dos pratos preparados por Edvânia. “Mas a comida logo caiu no gosto dos clientes”, conta ela. O casal resolveu apostar, então, em um cardápio de receitas tradicionais portuguesas, em especial da região Norte do país, onde fica a cidade natal de José Pedro.
Comida artesanal
Pode parecer estranho que uma pessoa que cresceu acostumada com a comida do Nordeste goiano – onde não faltam à mesa a maria-isabel, a carne-seca, o beiju – tenha se tornado uma especialista em gastronomia portuguesa. Porém, Edvânia sempre soube combinar seu talento natural com uma curiosidade de pesquisadora, fazendo da cozinha seu campo de experimentação. “A cozinha é meu laboratório”, brinca.
Mesmo antes de se tornar uma chef profissional, não raro ela procurava “desconstruir” toda nova receita que provava – como uma criança que tenta desmontar um brinquedo que acabou de ganhar – e tentar reproduzi-la. Dessas aventuras culinárias, ela se lembra de uma em especial, quando, ainda muito jovem, saboreou pela primeira vez uma rosquinha húngara e ficou maravilhada. Depois da primeira mordida, desenrolou a massa e viu que havia no seu interior coco e leite condensado. “Naquela época, não tinha internet, a gente não achava as receitas. Fui pra casa, fiz uma massa de rosquinha que sabia fazer, abri a massa, coloquei leite condensado, coco por cima, enrolei, cortei e pus pra assar. Fiquei tão orgulhosa. Ficou ótimo”, recorda-se.
Foi com esse olhar curioso e um paladar sempre apurado que Edvânia mergulhou de corpo e alma na rica e variada cozinha lusitana. Nessa empreitada, mesmo à distância, o auxílio da família de José Pedro, pródiga em excelentes cozinheiros, foi providencial. Deles, Edvânia recebeu desde o início as deliciosas receitas familiares transmitidas de geração em geração, livros e revistas de culinária e até conselhos por telefone. Mas foram – e ainda são – as temporadas anuais que passa na região do Porto, em que nunca perde a chance de cozinhar na companhia dos parentes de lá, os momentos em que vai aprimorando seu aprendizado.
No ambiente das cozinhas domésticas portuguesas, Edvânia percebeu que a tradicional gastronomia local é ao mesmo tempo simples e rigorosa. A simplicidade reside na ênfase ao sabor natural do alimento, sem muitos condimentos – o oposto, por exemplo, da cozinha baiana, com sua profusão de misturas e temperos. O rigor está no fato de que deve-se procurar seguir as receitas à risca – aqui, a improvisação não é muito bem-vinda (e neste aspecto os portugueses fazem jus à sua fama brasileira de serem literais). “Onde tem cebola, é para usar cebola, onde não tem, não se usa. Mais no Norte usa-se salsa, no Sul é mais coentro. Não se deve misturá-los, senão estraga o prato. Se o alho é amassado, deve ser amassado, se é laminado, não pode ser triturado. Se tem de picar com as mãos, não é com a faca”, exemplifica a chef.
Outra exigência da boa cozinha portuguesa é com relação à qualidade dos produtos, que devem ser de primeira linha. Mas isso Edvânia já tinha aprendido na casa da sua própria família em Divinópolis. Os queijos que sua mãe produzia com tanto cuidado – os curados amarelinhos por dentro e por fora e os frescos branquinhos de doer a vista – podiam custar até mais caro, porém, seu pai, Almiro, vendia-os todos no mercado, já que os queijos de dona Doracy eram famosos na cidade. Antes que essa palavra se tornasse moda, a comida servida à mesa da família de Edvânia poderia ser classificada como “orgânica”, já que desde o arroz, passando pelo feijão, o milho, os ovos, o melaço, a carne de frango e de porco, até as verduras e frutas, tudo era produzido na fazenda. “Meu pai basicamente comprava café, açúcar e sal na rua”, lembra a chef.
A incursão de Edvânia pelos sabores portugueses, no entanto, também teve alguns percalços. Um deles, quem diria, com relação à sobremesa mais famosa e pedida do Porto Cave: o pastel de natas. As primeiras tentativas de produzir a receita em seu “laboratório”, conta ela, foram frustrantes. Foi só numa de suas viagem ao Porto, quando estava acompanhando uma prima de José Pedro no preparo de outra sobremesa – uma torta de natas –, que Edvânia teve um insight e descobriu por que não acertava. “Vi a sequência em que ela foi organizando e misturando os ingredientes, como controlava o fogo, aí percebi onde estragava tudo”, conta ela, sem, contudo, revelar qual é o pulo-do-gato. No retorno para Goiânia, foi para a cozinha testar novamente a receita e hoje seus pasteizinhos de natas dificilmente encontram rivais à altura até em Portugal.
Desde quando abriu o restaurante, há quase 14 anos, Edvânia cuida pessoalmente do cardápio da casa. Alguns pratos, ela até delega a seus auxiliares na cozinha – hoje cinco cozinheiras, todas treinadas por ela –, mas há alguns que só a própria Edvânia prepara, como o Bacalhau Espiritual (“tem um molho bechamel e exige um frescor, além disso, as quantidades dependem do olho, não são muito definidas”), o Bacalhau da Vó (“uma receita tradicional com vários legumes”) e até bem recentemente um dos carros-chefe do restaurante, o Bacalhau à Brás (“durante muito tempo só eu fazia, para ficar cremosinho é preciso fazer vários processos para depois finalizar”). Outro prato que só leva a mão dela é o delicioso arroz de pato, recém-introduzido no menu do Porto Cave.
Durante todos esses anos, ela também fez vários cursos com chefs renomados, como Vitor Sobral, da badalada Tasca da Esquina, em São Paulo, e Rui Paula, reconhecido por sua cozinha regional portuguesa, mas com uma apresentação contemporânea. Também realizou um estágio no famoso Restaurante São Rosas, em Estremoz, na região do Alentejo. Ao longo da semana que ficou trabalhando na cozinha do São Rosas, Edvânia não pôde deixar de perceber um detalhe curioso: apenas um das centenas de clientes que foram atendidos pediu um prato de bacalhau. “Muita gente pensa que Portugal é só bacalhau, mas não é. Por exemplo, o cordeiro (borrego), a carne de porco são muito apreciados”, observa.
Desde quando ela e o marido abriram o Porto Cave, o restaurante logo se transformou em uma referência, não só regional, mas também nacional em termos de gastronomia portuguesa. Edvânia lembra que no primeiro ano de funcionamento da casa, em 2004, recebeu ninguém menos que o chef francês Olivier Anquier para saborear as suas sardinhas na brasa. Depois dele, passaram pelo local – que conta ainda com um salão para abrigar eventos – nomes como a cantora Simone e o cartunista Ziraldo (que retornou lá outras três vezes).
O sucesso do empreendimento, contudo, não alterou o propósito inicial do casal, que não era apenas se lançar num projeto meramente comercial, mas manter uma casa com identidade portuguesa, “com uma cozinha afetiva, personalizada, com história”, como define Edvânia. Um afetividade que não se faz presente apenas na comida e na carta com vinhos selecionados a dedo por José Pedro, mas se estende a detalhes como as flores naturais que enfeitam as mesas do restaurante – no sábado em que a reportagem de ERMIRA visitou o Porto Cave eram delicadas astromélias e lisianthus brancos e amarelos que Edvânia tinha acabado de comprar na floricultura – e uma pequena horta que a chef cultiva no local com mudas de manjericão, cebolinha, salsa, coentro, entre outros temperos.
Além de Portugal, Edvânia também viaja com frequência para outros países, sempre em busca de novos ingredientes e sabores. “Viajar é importante para quem trabalha com criação”, salienta. Numa de suas viagens mais recentes, ela se extasiou com a fartura dos banquetes no Líbano e os perfumados doces com caldas de rosas, uma das especialidades da culinária de lá. Com uma tão larga experiência na gastronomia, a chef goiana planeja passar no futuro temporadas mais longas em Porto, onde quer ter a chance de concretizar um sonho: preparar uma sopa de legumes como a que saboreou em Serra da Estrela, região montanhosa de Portugal – “a melhor coisa que comi na vida” –, e cuja receita nunca conseguiu repetir por aqui com o mesmo êxito, apesar das tentativas. “O sabor dos legumes é diferente, o terroir, o clima. Mas se tiver lá, consigo fazer”, promete. Sorte de quem estiver à mesa!
Leia mais em http://ermiracultura.com.br/2019/04/14/angus-e-afetos/.
Acredito que cozinhar é a expressão de quem somos. Estou feliz por Rosângela ter conseguido passar isso de forma brilhante para os leitores de Ermira. Sinto me honrada por cá estar! Toda minha gratidão e reconhecimento aos profissionais dessa importante fonte de cultura e comunicação!
Parabéns Rosângela Chaves pela sensibilidade e delicadeza com a qual escreveu este texto. Minha querida amiga Edvania é merecedora de nossos aplausos e reconhecimento pelo seu lindo Projeto junto de Pedro! Parabéns Edvania e Pedro, beijo carinhoso a vcs! Emília.
Querida Edvânia, viajei em sua biografia. Belo texto, senti todos os aromas e texturas, do interior de Goiás, passando pelo Líbano, Portugal……… Parabéns por sua linda trajetória, como filha, mulher, mãe, esposa, empresária, Chefe e ser humano espetacular! Gilmar e eu somos muito gratos por sua amizade! Muito sucesso pra você! Mônica.
Querida Edvânia, você e Zé Pedro formam uma dupla incrível. É por isso que o Porto Cave é um restaurante que frequento com toda paixão. Parabéns pela linda história que Ermira contou para todos nós, os seus amigos e os seus admiradores.
A Edvânia além de uma excelente chef também é um ser humano maravilhoso! Linda trajetória recheada com dotes culinários que se manifestaram desde a sua infância. Parabéns! Você é merecedora!
Excelente!!!
Bela reportagem de Rosângela Chaves e linda história de Edvânia Nogueira. O que faz diferença mesmo nesse mundo é o afeto em tudo que se faz. O amor, em todos os sentidos. Parabéns às duas.
Obrigada, querida. Bjs!
O texto traduz o afeto da cozinha da Edvânia. Parabéns!