Há cerca de 45 mil anos uma leva de chamados “homens modernos”, originários da África, atravessou o Mediterrâneo e chegou à Europa, então habitada por grupos de homens de neandertal. Com menos de 0,5% de diferenças biológicas impressas no DNA e prováveis ancestrais longínquos em comum, os dois grupos não se miscigenaram, o que teria sido possível. O homem paleolítico de neandertal, já homo sapiens segundo uma interpretação, ou subespécie de homem neandetarlensis, veio a desaparecer, em parte devido ao período de glaciação que atingiu seu hábitat no sul da Europa e da Ásia entre 30.000 e 18.000 A. P. E o homem anatomicamente moderno oriundo da África tornou-se ancestral de todos os seres humanos da face da Terra (Hall, 2008).
Em seu livro Mediterrâneos Invisíveis (Paz e Terra, 2016), Cristovam Buarque não trata especificamente deste tema atrativo da paleoantropologia, nomeando momento posterior da sedentarização pela revolução neolítica e origem da civilização mesopotâmica há dez mil anos, com sua consequente migração posterior, citando o paleontólogo Michel Brunet: “somos todos africanos e migrantes” (p.38). Caminha o autor a partir do momento atual, onde, em senda semelhante aos nossos distantes antepassados, cruzam dramaticamente o Mediterrâneo os refugiados das guerras e da catástrofe econômica oriunda do colonialismo e da aridez ambiental alimentada pelo ser humano encrustado em soberanias e desprovido de sentimentos humanitários.
A partir de uma viagem à Turquia a convite do Hizmet – movimento civil e religioso que une organização, religião islâmica, solidariedade e democracia e atrai polêmica e perseguição por parte do regime de Erdogan -, onde chegou à fronteira da Síria e visitou o campo de refugiados de Kilis, cuida o autor de refletir sobre a crise dos refugiados sírios e de outras regiões em um diálogo com seu pensamento sobre a exclusão social planetária, que chamou de cortina de ouro, local ou regional, que separa a abundância da escassez do gulag social, simbolizado pela fotografia do corpo sem vida na praia grega do menino Aylan Kurdi – que comoveu o mundo.
Testemunho reflexivo ou, como escreve, reflortagem, Cristovam Buarque dialoga com seu próprio pensamento com atenção a outros autores e atores e constrói um hipertexto a partir do contraponto de sua experiência e sua obra, assim como de referências que ajudaram a alicerçar o seu pensamento. Em remissão ao tempo tríbio (passado, presente e futuro), noção de Santo Agostinho que Gilberto Freyre gostava de difundir, Buarque diagrama o caminho de uma encruzilhada, onde seríamos hoje o homo crucis, vivendo a época do Antropoceno, que chama de era, ainda distantes de uma planetania tanto utópica como necessária.
Sendo o Antropoceno um conceito em debate, ainda não oficialmente aceito pelos geólogos – criado por Crutzen e combatido por incerto cientificamente para atribuição de status geológico – porém cada vez mais aceito quanto ao efeito da revolução industrial sobre as mudanças climáticas, o senador rememora em sua reflortagem as lembranças pungentes de sua visita a Chernobyl. Acrescento eu: segundo dados colhidos em outros autores por J. R. McNeill, a radiação dos rejeitos do desastre ucraniano persistirá letal por 24 mil anos, sendo que todas as pessoas do hemisfério norte foram afetadas por ao menos uma ínfima parte (McNeill, 2000, p. 312).
Em seu livro de intelectual engajado, em oposição à “ciência” econômica que pretende ser livre de valores (value free), para quem o PIB cresce com o prejuízo, o meio ambiente é uma externalidade quando na verdade está na base da produção – e por isso a economia ecológica se impõe como passo adiante da economia do meio ambiente, que é uma visão econômica ainda neoclássica ou visão econômica do meio ambiente (Cavalcanti, 2008:2014) – Chernobyl, Bhopal, Fukushima e Mariana são tristes testemunhos da imprevidência previsível e, acrescento, risco e ameaça propositalmente ocultos.
O livro é sensível e sincero na descrição do encontro deste pernambucano com as famílias sírias deslocadas e sua impressão imediata do drama pessoal e coletivo que desenrolava-se perante os seus olhos, em suas dimensões globais, humanas, ambientais, geográficas, históricas e metafóricas.
Desde Arnold J. Toynbee, sabemos que a história dos homens melhor se conta pela História da Terra. São poucos os que atentam para isso, apesar da expansão da consciência ecológica. A Paz de Vestfália de 1648, posterior à Guerra de 30 Anos, foi apenas um instantâneo do momento na longa caminhada histórica, mas é considerada seminal no estabelecimento das soberanias modernas. Nesse percurso a reciprocidade é fundamental na internacionalização das questões transfronteiriças que afetam a todos.
Em suas andanças pelo mundo, Cristovam Buarque aceitou hipoteticamente, para efeitos propedêuticos, a visão da internacionalização da Amazônia, desde que condicionada à internacionalização do petróleo e, diga-se, dos recursos naturais. Em outras palavras, a internacionalização não deve ser imposta pela força unilateral e beneficiar uns em detrimento de outros.
O polonês Ignacy Sachs – doutor em economia que construiu o conceito de ecodesenvolvimento e cuja vida abrange experiências de planejamento, trabalho e academia em Europa, Brasil e Índia, e que foi professor de Cristovam em Paris, abrindo seus olhos sobre a teologia do crescimento (p. 132) -, ao propugnar pela biocivilização em palestra na UnB, utilizou termos nacionalistas sobre a Amazônia e opôs-se à visão da chamada ecologia profunda e do famigerado “neoliberalismo” (Sachs 2008:2014). Dragão para alguns, solução para outros. Fumaças do hipercapitalismo aos olhos do homem.
Sem embargo de alguns de seus argumentos de alto coturno, cumpre assinalar que a Amazônia sul-americana não pertence apenas ao Brasil. O planejamento, como a ideologia, não é onisciente. A biocivilização, que no caso exemplar do Brasil significa florestas, agrosilvicultura, produção da agricultura familiar e o zoneamento ecológico-econômico não impositivo à revelia das dinâmicas das atividades humanas, não prescindirá de sua inserção na divisão internacional da produção e dos serviços ambientais na era das mudanças climáticas. Ou da participação social no caso dos grandes projetos, do consentimento livremente informado por estudos ambientais profundos e isentos, pela informação de a quem beneficiam os projetos, qual custo, quem paga e qual o retorno, para definição de se devem seguir em frente.
Percebo pelo texto publicado que a francofonia destes autores que viveram a intelectualidade francesa esboça diálogo com o desenvolvimento da história ambiental – disciplina a princípio estadunidense – e que, segundo reconheceu Sachs, vai além do compasso da temporalidade da escola francesa dos anais históricos (p. 48). Conversa que se estende a experiências, práticas e teorias de todos os continentes.
Para alguns a internacionalização é entrega, para outros, utopia. No caso do Brasil amazônico é florestania, um caminho não dogmático de preservação e produção, desenvolvimento e conservação. Sendo amplo o debate, localmente ou na imensa ágora cibernética, maior o desafio.
O Plano Marshall Social (p. 131), com transferência de renda condicionada, propugnado pelo senador que criou o bolsa-escola, realisticamente assertivo das pedras no caminho, ainda esbarra nas limitações estruturais e culturais básicas da caminhada, impedimentos que vemos cristalizados no reacionarismo crescente, nos mitos construídos sobre realidade distópica nos EUA, na derrocada da União Europeia, na autocracia russa, na ausência de democracia na China, na exportação territorial dos custos socioambientais dos países desenvolvidos e, no caso do Brasil, na falta de honestidade, coerência básica do entendimento transparente e da responsabilidade dos estadistas. Oxalá floresça nas consciências aqui e alhures.
Ainda estamos distantes da internacionalização dos custos ambientais e do abandono dos grandes projetos insensatos feitos para gozo de poucos setores e prejuízo difuso. Em termos globais, aumenta o fosso, haja vista a estreiteza das atitudes do mundo, onde recrudescem os nacionalismos. Discutir esquerda e direita esquecendo da substância é armadilha estacionária em mundo cambiante de orelha em pé.
Como fez, pretendeu ou deixou fazer o governo das megaobras, do sindicalismo desvirtuado em aparelhamento do Estado e do BNDES vertical, concentrador e sem transparência, do autoritarismo transposto em esquemas políticos ilícitos com o dinheiro da Petrobras disfarçado em ufanismo.
Soluções se constroem com honestidade. Para dizer simplesmente: a solução boa é a que funciona e melhora, amplia a qualidade de vida e a oportunidade de trabalho. E cultiva alguma humildade não antropocêntrica, olhando o longo prazo, considerando a ecologia e buscando o desenvolvimento humano: saúde, diversão e arte na evolução das atividades humanas inerente ao mundo de novas tecnologias. Como a horizontalidade de uma civilização solar em face do alto custo monetário e ambiental do petróleo, motor da grande aceleração[1] da economia global que atingiu o aquecimento global e aumentou a cortina de ouro.
A nação brasileira, onde metade das pessoas não têm acesso ao esgotamento sanitário, quer saber do saneamento básico: este sim deveria ocupar governos e empreiteiras. Sendo esse apenas um dos muitos desafios da complexidade atual, a utopia se constrói com doses de pragmatismo. É problema de engenharia social aplicada, mas sobretudo de consciência e mentalidade. Sem apego a dogmas que não consideram as várias dimensões envolvidas nem medo de andar para frente.
Quanto ao mundo, vasto mundo em planeta limitado, o pequeno livro de Cristovam Buarque, como no caso citado do microcrédito em Bangladesh (p. 135), contém modesta e firme contribuição.
Referências
Buarque, Cristovam. Mediterrâneos invisíveis − os muros que excluem pobres e aprisionam ricos. Ed. Paz & Terra. Rio de Janeiro e São Paulo, 2016.
Cavalcanti, Clovis de Vasconcelos. Insustentabilidade do desenvolvimento econômico: o fetiche do crescimento. Aula Magna proferida no Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília em 16 de abril de 2008. Em Castro, Vanessa Maria e Wehrmann, Magda E. S. De F. (org.) Esquina da Sustentabilidade − um laboratório da biocivilização. Brasília, Ed. UnB, 2014.
Hall, Stephen S., Last of the Neanderthals, National Geographic Magazine, Washington D. C., October 2008.
McNeill, J. R., Something new under the sun − An Environmental History ot the 20th century. Norton, New York, 2000.
Sachs, Ignacy, Laboratório da biocivilização do futuro. Palestra proferida nas Quartas Sustentáveis do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília, em 12/11/2008. Em Castro, Vanessa Maria e Wehrmann, Magda E. S. De F. (org.) Esquina da Sustentabilidade − um laboratório da biocivilização. Brasília, Ed. UnB, 2014.
Notas
[1] https://www.washingtonpost.com/opinions/a-new-version-of-earth/2016/04/21/4cc841dc-055d-11e6-b283-e79d81c63c1b_story.html?utm_term=.dda249efc528