De Lisboa, Portugal − Madrugada de sábado, o silêncio já se impõe nas ruas de Alfama, cujas casas de fado e restaurantes obrigatoriamente fecham as portas à meia-noite. Mas na Rua de São Mamede, onde se localiza a Associação do Fado Casto, uma espécie de clube de fadistas gerenciado pelo músico e compositor Pedro de Castro, a noitada está apenas começando. Um endereço fora do circuito da zona mais turística da cidade, ponto de encontro de músicos e boêmios, é para lá que os fadistas de Alfama e dos arredores vão depois de mais um turno de trabalho, para tomar “uns copos” e cantar e tocar os fados do coração, sem estar presos ao repertório manjado que noite após noite repetem para os turistas.
Estou no local a convite de Lila Ellen Grey, uma antropóloga norte-americana que pesquisa o ambiente cultural associado ao fado – é autora do livro Fado Resounding: Affective Politics and Urban Life (2013) −, e de quem fiquei amiga durante a temporada de estudos do doutorado-sanduíche em Filosofia que passei em Portugal, de abril a julho últimos. Pouco tempo depois de lá chegarmos, após ter assistido à noite de fado na Esquina da Alfama, animada pelos cantores Lino Ramos, Ivone Silva e Ricardo Mesquita, Ellen me chama a atenção para uma senhora idosa, elegante e empertigada, sentada à extremidade de uma das compridas mesas do salão da Associação, que beberica tranquilamente um copo de coca-cola e de vez em quando saboreia uma azeitona, enquanto conversa com alguns jovens músicos que a rodeiam.
De repente, o anúncio de que esta senhora vai cantar faz com que todos se calem, numa expectativa reverente, conscientes que vão testemunhar algo extraordinário. Porque a voz que se eleva, que se espalha pelo espaço e que se apodera dos que estão ali presentes não é uma voz qualquer. É a voz de Celeste Rodrigues, irmã da lendária Amália Rodrigues (1920-1999), que aos 94 anos de idade demonstra ainda um espantoso vigor.
Ser irmã da mulher que reinventou o fado, aquela que, ao lado de ícones como o poeta Fernando Pessoa, os azulejos coloridos e as sardinhas, se tornou um símbolo de Portugal, felizmente nunca intimidou Celeste. Com sua voz de contralto, potente e densa, a cantora personifica a melhor tradição do fado. Seu canto pleno de sentimento e beleza, e que denota ainda um admirável frescor apesar das mais de nove décadas de vida da artista, desvela com paixão a alma lusitana.
Naquela madrugada na Associação do Fado Casto, no último mês de julho, enquanto Celeste entoa os temas recorrentes do fado – histórias de amor e traição, crônicas da vida boêmia, sempre tendo como pano de fundo os becos e as ruas de Lisboa –, não é apenas o lamento triste e nostálgico da sua voz que comove e emociona. Mas também a constatação de que essa voz representa algo de mais profundo, sagrado até. Como as catedrais, o casario, as vias tortuosas dos bairros antigos da capital portuguesa, a voz de Celeste também é um monumento histórico.
Influências
Amália e Celeste, as irmãs cantoras, tão parecidas que Celeste não raro era confundida com Amália, tiveram a sua primeira e mais forte referência musical dentro de casa. Desde crianças, nas moradas pobres em que viviam, primeiro no Fundão e depois em Lisboa, a voz cristalina da mãe animava o ambiente familiar. Em uma entrevista que concedeu em 2014 ao jornal português Público, Celeste contou que sua mãe era conhecida como “o rouxinol da Beira”. “Tinha uma voz que se ouvia a dois quilômetros.” O pai, sapateiro, também era um músico polivalente, tocava saxofone, trompete, flauta e ganhava uns trocados se apresentando em bandas para sustentar a família numerosa – dez filhos, dos quais a metade não sobreviveu à primeira infância.
Amália estreou no teatro de revista em Portugal na década de 1940, e seu talento excepcional logo a alçou ao estrelato. Celeste seguiu a irmã na carreira artística, fazendo o seu début em 1945, no Casablanca (atual Teatro ABC), uma badalada casa de shows lisboeta. No entanto, ao longo de sua longeva trajetória, e apesar da enorme semelhança física com Amália, Celeste teve o cuidado de nunca tentar copiar a irmã mais célebre.
Se sua carreira foi bem mais modesta em comparação com a de Amália, também foi pontuada de grandes momentos. Além de duas longas temporadas no Brasil nas décadas de 1940 e 1950 – a primeira ao lado de Amália, integrando o elenco da opereta Rosa Cantadeira e do espetáculo de revista Bossa Nova, e a segunda atuando no rádio, na televisão e no Restaurante Fado, comandado por Tony de Matos em Copacabana −, Celeste fez turnês pelos Estados Unidos, pelo Canadá e por países da Europa e manteve por muito tempo uma movimentada agenda de shows nas principais casas de fado de Lisboa.
Sua discografia é imensa: gravou mais de 60 discos. Entre as canções que ficaram mais famosas na sua voz estão A Lenda das Algas (Laierte Neves/Jaime Mendes), Saudade Vai-te Embora (Júlio de Sousa), O Meu Xaile (Varela Silva) e Olha a Mala, o seu maior sucesso. Em 2010, ela foi tema do documentário Fado Celeste, realizado pelo seu neto Diogo Varela Silva. A sua vida pessoal também teve momentos dignos de uma letra de fado: aos 17 anos, ela caiu de amores por um toureiro, José Casimiro, com quem viveu um conturbado romance. Mas ela só se casaria aos 30 anos, com o ator Varela Silva, ao lado de quem inaugurou, no final da década de 1950, o restaurante A Viela, um local que se tornou referência na noite lisboeta por atrair intelectuais e artistas. O casal teve duas filhas e se separou após 25 anos de convivência.
Hoje, Celeste é reverenciada pelas gerações de novos e talentosos fadistas que cultivam e renovam a tradição musical portuguesa. O ritmo da sua agenda diminuiu, mas ela continua a se apresentar e até o primeiro semestre deste ano podia ser vista no Café Luso, no movimentado Bairro Alto, em Lisboa.
“O fado é a minha vida”
Depois que Celeste se silencia, a plateia da Associação do Fado Casto permanece por alguns momentos como que magnetizada e seu canto parece ainda estar impregnado no ambiente. Ela toma mais um pouquinho do refrigerante, come uma azeitona e comenta, severa consigo própria, que a sua voz não estava muito boa naquela noite. Gaspar, seu bisneto, um adolescente que já se revela um talentoso instrumentista e que a acompanhava na guitarra portuguesa, sorri da exigência extremada da bisavó. Pedro de Castro, que tocava violão em duo com Gaspar, faz alguns gracejos com a cantora, fala dos arranjos que havia composto especialmente para a sua voz e pede mais uma porção de azeitonas, que ela adora, para que Celeste leve para casa.
Ellen e eu, que tivemos a sorte de nos sentarmos bem ao lado de Celeste enquanto ela cantava, puxamos conversa e a fadista veterana nos conta de sua paixão pelo Brasil. Relembra os tempos em que percorreu o país de ponta a ponta fazendo shows – além das longas temporadas em cartaz nos teatros do Rio de Janeiro, ela se apresentou em São Paulo, Minas Gerais, no Nordeste, no Sul do País e chegou até a Amazônia. Das várias estrelas nacionais que conheceu nessa época, ela guarda com carinho a lembrança do ator, compositor e poeta Mário Lago. Mas a conversa é logo interrompida por um brasileiro, com jeito de turista e que parece um pouco deslocado no ambiente, que pede a Celeste para tirar uma selfie ao lado dela. A artista concorda, um pouco a contragosto, e pede ao rapaz que não poste a sua imagem no Facebook. Fico na dúvida se ele vai cumprir o prometido.
Já são mais de 4 horas da manhã, e a pequena plateia que ainda resiste na Associação do Fado Casto agora vibra com a jovem fadista Teresa, que canta com entusiasmo e paixão. Antes de partir, Celeste nos confidencia que se contenta com poucas horas de sono e que a receita para sua vitalidade impressionante é o próprio fado, o elixir que a mantém de pé. “O fado é a minha vida”, resume.
O fado e sua voz celestial.
Confira a seguir o vídeo Fado Celeste, realizado por Bruno Almeida para comemorar os 90 anos de Celeste Rodrigues. Em cena aparecem vários fadistas famosos como Camané, Gisela João e Carminho (que recentemente lançou um disco belíssimo em que interpreta composições de Tom Jobim). O garotinho de cabelos cacheados que ganha destaque no vídeo é Gaspar, o bisneto de Celeste, que hoje adolescente já revela sua alma de fadista.
Pura poesia seu texto!! Lindo de se ler, ver e ouvir!
Adorei o texto, me senti em Lisboa, ouvindo fado.
Rosangela, naveguei no seu texto. Senti a Celeste ao meu lado e o fado fluindo na noite lisboeta.
Gostei bastante do seu texto, só errou no conteúdo da bebida, Celeste não bebe vinho, aliás nunca bebeu nada com álcool, ela estava a beber uma coca-cola 🙂
Caro Diogo, obrigada pelos comentários. Quanto ao erro apontado, já foi corrigido. Obrigada!