De Paris – Com lenço, compondo um look legal, e com documento, porque nestes tempos não é recomendável zanzar por aí sem identificação. E, claro, um calçado confortável, uma garrafinha de água a tiracolo, um mapa para se localizar e a vontade de conhecer os pequenos segredos da cidade. Assim preparado, você está pronto para flanar por Paris. E como é bom fazer isso, meio que sem rumo, sem horários definidos, deixando a curiosidade e o acaso definirem seu destino. Dessa forma, cada esquina pode guardar uma grata surpresa, um local histórico, um restaurante charmoso, um vislumbre do que faz a capital francesa um dos centros culturais do mundo.
Na França foi cunhado o termo flâneur, que significa exatamente o sujeito que bate perna o dia inteiro. Isso é até lógico, uma vez que caminhar a esmo por Paris integrou a rotina de grandes gênios da literatura, algo que eles transportaram para seus escritos. Um dos mais famosos flanadores da Cidade Luz foi o filósofo alemão Walter Benjamin, que em diversos de seus ensaios tenta compreender a modernidade a partir do hábito de andar por uma cidade cosmopolita. Ele, na verdade, seguia os passos de um outro autor relevante, o poeta Charles Baudelaire, cujo imaginário é inseparável do ato de se deixar levar pelas ruas do centro urbano.
Baudelaire e Benjamin dedicam olhares lúdicos e ao mesmo tempo profundos sobre Paris e seus rios de gente que circulam para lá e para cá. Interagindo com esse pulsar da cidade, ambos traçam roteiros na teia de vias da cidade milenar, construindo e desconstruindo locais, sentimentos, mentalidades. Ao integrar tais errâncias à sua poesia, na verdade Baudelaire inaugurava uma nova estética, um novo jeito de traduzir a realidade por meio da criação literária. Esse viés quase sociológico de sua obra é inspirado, de alguma forma, nos contos do norte-americano Edgar Allan Poe, autor que foi traduzido para o francês por Baudelaire. Depois veio Benjamin para fechar essa equação em que a cidade é ao mesmo tempo cenário e personagem.
Não é difícil entender como Paris é colocada nessa dupla função. A cidade é muito propícia às narrativas – talvez por isso tenha gerado tantos escritores. Desde os seus esgotos – esmiuçados em obras como Os Miseráveis, de Victor Hugo –, às suas esquinas sombrias – descritas nos textos de terror psicológico de Nerval –, cada canto da metrópole é redesenhado por meio da literatura. Autores como Apollinaire, Rimbaud, Zola, Madame de Stäel e até o Marquês de Sade – que foi prisioneiro na Bastilha antes de sua queda – apresentam visões muito particulares da efervescência da cidade. E todos adoravam andar por ela. O mesmo aconteceu com a chamada Geração Perdida, como Hemingway, Fitzgerald, Ezra Pound, James Joyce. Paris é uma festa para quem escreve.
Por isso é imprescindível, até mesmo obrigatório, ainda que seja por um dia, aventurar-se por seus jardins, seus monumentos, suas passagens estreitas, suas avenidas largas, seus cartões-postais e seus recantos menos turísticos. Percorrê-la não em seu eficientíssimo metrô, mas caminhando por sua planura (com a exceção do bairro de Montmartre, pródigo em ladeiras). Paris, no verão e na primavera, convoca a todos para a vida ao ar livre, sob o sol e um vento agradável que não costuma deixar o calor passar da conta. Deixe a preguiça de lado e, tal como os autores que lemos com paixão, caminhe por Paris.
Nesse andar para cima e para baixo você pode chegar, por exemplo, à Rue de Lille, que passa logo atrás do Museu D’Orsay, um dos principais e mais ricos em obras do Impressionismo de todo o mundo. A Lille parece ter uma ímã para atrair personalidades. Nela, o pintor Max Ernest morou até sua morte, em 1976. Seguindo pela mesma calçada, chegamos ao prédio onde o psicanalista Jacques Lacan manteve seu consultório e atendeu por 40 anos, de 1941 até o final da vida, em 1981. Placas em frente aos imóveis dão essas informações aos transeuntes e elas estão espalhadas por toda Paris. Mais um convite para descobrir seus segredos.
Paralela à Rue de Lille, nas proximidades do Quartier Latin, região emblemáticas de Paris por ali estar a universidade Sorbonne e por ter eclodido em suas ruas, entre outros eventos históricos, o Maio de 68, fica a Rue Jacob. Este também é um lugar onde se respira história. Nos jardins de um de seus imóveis, o Hotel D’York (que funciona hoje sob o nome de Hotel D’Angleterre), foi assinado o acordo de paz entre Estados Unidos e Inglaterra, em 1783, que reconheceu a independência americana da metrópole inglesa. Estiveram neste ponto para este evento histórico ninguém menos que Benjamin Franklin e John Adams, dois dos “pais” da nação norte-americana.
A Jacob cruza com a Rue Bonaparte e na esquina das duas funciona o Le Pré Aux Clercs, restaurante que era frequentado por um grande número de artistas de várias gerações. Conta-se que Ernest Hemingway, quando estava meio sem dinheiro, ia parar ali a fim de matar a fome, já que o preço era mais em conta. A casa fica bem próxima à antiquíssima igreja de Saint-Germain-des-Prés, em torno da qual, tradicionalmente, sempre houve uma concentração de pontos de encontro da intelectualidade de Paris. No Boulevard Saint Germain, em frente à igreja, está o Le Deux Magots, bar e restaurante frequentado por escritores como Jean-Paul Sartre e Albert Camus – palco também de alguns desaforos trocados entre os dois.
Logo em frente está o Brasserie Lip, outro ponto de reunião conhecido de várias gerações de autores. Alguns deles moraram perto dali. Ernest Hemingway pulou de endereço em endereço nas proximidades. Suas casas se localizavam do Boulevard Saint Germain até próximo ao Jardim de Luxemburgo. Em frente a este parque moraram o casal Scott e Zelda Fitzgerald. Eles eram vizinhos do mais famoso apartamento da Rue Fleurus, habitado pelo casal Gertrude Stein e Alice Toklas. Elas catalisaram as vanguardas artísticas durante três décadas em Paris, dos anos 1910 aos 1930. O prédio tem um pátio interno e um pórtico na entrada sob o qual passaram, com frequência, nomes como Pablo Picasso, T.S. Eliot, Henry Matisse, Sinclair Lewis e John Dos Passos.
Ainda nos arredores do Jardim de Luxemburgo, próximo à imponente Igreja de Saint Sulpice, ficam três ruas estreitas: a Férou, a Servandoni e a Garancière. Nesses três quarteirões paralelos moraram, em diferentes épocas, o próprio Hemingway – ele é meio que onipresente na cidade – e outro gigante, William Faulkner, na breve temporada que passou em Paris em 1925. O poeta Rimbaud também morou nesse quadrilátero e até mesmo os mosqueteiros de Alexandre Dumas. Sim, no famoso romance escrito por um dos autores mais populares da França, os heróis D’Artagnan, Porthos, Athos e Aramis circulavam por ali – tendo encontros amorosos e duelos nas então desertas ruas que cercavam o Jardim de Luxemburgo.
Se o flâneur pegar a direção de Montparnasse tem a chance de encontrar as antigas residências de autores como Marguerite Duras e Sainte-Beuve. Se tomar a direção da Sorbonne, poderá ver o endereço mais famoso de Hemingway em Paris, na Rue Cardinal Lemoine – há até uma agência de turismo no edifício lembrando o morador mundialmente notório –, e encontrar, não longe dali, na Rue Mouffetard, o charmosíssimo restaurante La Maison de Verlaine. O lugar tem este nome porque fica no térreo do prédio onde morava o escritor Paul Verlaine, que morreu neste imóvel, em 1919, marcado pelo ruidoso caso que teve com o jovem Rimbaud. O local, no coração do Quartier Latin, continua a ser destino de autores contemporâneos. Chico Buarque, que tem apartamento em Paris, gosta de ir ao restaurante. Uma de suas passagens por ali está registrada na entrada da casa.
Paris é dividida em duas partes pelo Rio Sena: a Rive Gauche, ou margem esquerda, e a Rive Droite, ou margem direita. Todos os lugares citados até agora ficam na Rive Gauche. Do outro lado das lindas pontes que emolduram a capital francesa – destaque para a Pont Neuf, a mais famosa de todas, e para a Ponte de La Concorde, cujas pedras para sua construção foram retiradas da demolição da Bastilha após a Revolução Francesa de 1789 –, também há muitos lugares interessantes para conhecer a pé. Nas regiões do Marais, da Bastilha e da Ópera, há grandes bulevares, avenidas largas que redesenharam não só Paris, como também serviram de inspiração para muitas outras cidades, como a reestruturação urbana do Rio de Janeiro, no início do século 20.
Entre essas vias movimentadas escondem-se alguns segredos saborosos. É preciso prestar atenção para vê-las. É preciso saber que não se pode deixar de entrar nelas. Boulevares como o Haussmann, dos Italiens, o Malesherbes e o Saint Martin – que circundam pontos turísticos como o Grand Palais, a Igreja de la Madeleine, as Galerias Lafayette e a Ópera de Paris –, são interligadas por passagens, algumas delas bastante extensas, cheias de antiquários, livrarias de obras raras, galerias de arte. Duas delas merecem um passeio.
A Passagem Joufrouy, que abriga o Museu Grévin, começa no Boulevard Montmartre e termina em uma rua estreita, a Rue de La Grange Batelière. Eis um lugar insuspeitadamente histórico em Paris, sob vários aspectos. Reis, como Luís XV, já se hospedaram em seus imóveis. Nela, Amandine Aurore Lucile Dupin, romancista que ficou mundialmente conhecida sob o pseudônimo de George Sand, passou seus primeiros anos de infância. Também foi em um de seus prédios que Allan Kardec, fundador da doutrina espírita, assistiu pela primeira vez a fenômenos que seriam a manifestação dos espíritos dos mortos. E por ali também andava Walter Benjamin, concebendo sua leitura do mundo a partir do andar sem rumo, como dissemos no início deste texto.
Quem se dispuser a se perder pelos becos da região pode acabar parando em outras passagens, como a de Saint Anne, não muito longe de uma das entradas que dão acesso aos arcos do Louvre e a seu famoso Carrossel. Restaurantes populares, cafés com quitutes típicos de Paris e muita história são os principais atrativos dessa região, onde tantos personagens da vida real e da ficção transitaram nos últimos séculos. Nada mais convidativo que se juntar a essa turma e flanar pela Cidade Luz. Andar por Paris, com lenço e documento, mas sem destino e horários a cumprir, por favor!
Texto saboroso! Vontade de rever todos os lugares e flanar por Paris.